domingo, 22 de julho de 2007

EDUCAÇÃO NUM MUNDO DE IMAGENS: do visível ao invisível uma revolta sensual

por Fabio Giorgio Azevedo

“tornar sensíveis as forças
insensíveis que povoam o mundo,
e que nos afetam, nos fazem devir”



Há um momento originário de consciência da percepção, quando se começa a estabelecer sintaxes de sentido entre seus elementos formadores, onde é possível exprimir e compreender signos que se pretendem fazer comunicar graças à intersubjetividade (suposta como condição para o compartilhamento de sentido), a despeito das singulares relações forma/conteúdo que cada ator perceptivo possa produzir individualmente. Esse lugar-comum da percepção é o que possibilita a construção de discursos imagéticos que tenham em vista a transmissão de mensagens.
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Ora, num nível que podemos nominar extra-discursivo, a composição estética de uma imagem estabelece com o espectador, ainda no instante pré-predicativo, uma relação de continuidade ou ruptura no que designa a sensação diante da imagem – sensação de estabilidade, produzida pela apropriação “natural” da imagem e pelo reconhecimento de seus elementos estéticos; ou sensação de desassossego, pela inadequação da imagem aos aportes estéticos (formadores) do observador. O que está pressuposto nesse jogo é um bloco de sensações que é constituído num plano de composição - seja do fruidor das imagens, seja daquele que a lança como afecção em direção aos corpos.
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Essa potência de afetar das imagens co-cria o mundo, porque não há extramundo, isto é, a sintaxe do mundo se compõe com as subjetividades, que também o constituem e por ele são atravessadas. O composto imagem-mundo-subjetividade fabrica e veicula formas que se tornam espessas à nossa percepção compreensiva e são incorporadas efetivamente como realidade, produto dos efeitos que se prolongam através das imagens e tomam corpo nos devires humanos e inumanos do mundo.
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Desse modo, podemos já intuir a instituição estética – a normatização da “boa forma” - que passa a ser responsável pela forma-de-ver-o-mundo dos indivíduos, do que se pode dizer que seja o mundo a partir do que se vê, da relação entre o visível e o dizível, que é habitualmente tomada como uma relação de reciprocidade, de correspondência, por graus de semelhança e aproximações de vizinhança. Nesse sentido, uma forma crítica que ganha força atualmente é o exercício de desmistificação das imagens como atividade libertária, com a intenção de desaprisionar o espectador das ilusões de sua ideologia silenciosa que amolda o que parece ser moldado em-si e por-si, e que parece ter uma essência própria independente do trabalho da percepção. A atividade perceptiva, do ponto de vista de quem propõe a existência de um por detrás das imagens, é uma atividade de maculação da coisa, de impregnação da coisa pelos pré-conceitos da subjetividade que a percebe – desde o início já de modo distorcido, por assim dizer. Nessa perspectiva, que se traduz numa fenomenologia, o trabalho do educador seria “limpar” as imagens, desvencilhar o espectador do brilho ofuscante de seu próprio contorno para que se possa ver, em profundidade, o brilho próprio da coisa por ela mesma. Ainda que se abandone a idéia de captar o ser-da-coisa, já que se está mergulhado entre elas e sem a possibilidade de um “afastamento” – sendo aconselhável, metodologicamente, a descrição da implicação, do envolvimento do espectador - guarda-se, ainda assim, quando a crítica significa um desvelamento da ilusão - a saída da caverna, o descobrimento da natureza -, uma nostalgia como a que se vislumbra na voz de Caeiro, em O Guardador de Rebanhos: “as coisas são o único sentido oculto das coisas”.
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De outro modo há sempre um invisível possível constituinte de todo visível, e que é possível porquanto não existe em potência, mas é produzido (jogar mundos no mundo) em acto. E a produção, a expressão desse invisível, diz respeito a um processo de deseducação dos sentidos, de uma desterritorialização da semiótica perceptiva, de uma plissagem na articulação do real percebido e da experiência vivida, uma fissura nos clichês da significação. Isso que chamamos de deseducação dos sentidos, inspirado na opinião de Bacon quanto ao objetivo da arte, significa limar os ídolos (clichês), isto é, abrir nosso campo perceptual ao que está fora da tela, o que mantém com a tela uma relação de mútua determinação, mas que ali não se explicita, pois diz respeito ao bloco de sensações que se forma na fusão da imagem com o espectador, criando entre os dois uma zona de indiscernibilidade.
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É justamente nessa zona obscura onde não está mais em jogo nem a imagem nem tampouco o indivíduo (ainda que um e outro sejam parte do plano de composição, formando um bloco), que os devires de todo tipo, as sensações mais contundentes e inimagináveis podem surgir como uma espécie de iluminação, produzindo outros arranjos na organização da percepção e delineando outras subjetividades, e ainda outros devires, compondo com as imagens um modo de expressão que cria - o invisível.
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A “revolta sensual” acontecerá quando, seguindo as linhas de uma atividade de despersonalização do indivíduo pela desconstrução ativa do plano estético onde se erige seu modo de ver as coisas, pode-se produzir uma perspectivação que libera o mundo, ou melhor, atinge a carne do mundo na construção de um plano infinito de variedades, e que não se reduz ao real observado e compartilhado. Pois com o desvio da percepção habituada há também o desvio da existência costumeira, do habitar-se a si mesmo como uma repetição identitária. E, nesse sentido, a criação de um território estético, experimentativo e próprio - tornando-se o artista de si, escultor incessante de modos de existir -, é condição para criação do mundo, para expressão do invisível, para invenção da existência como obra aberta, inacabada não porque incompleta, e sim, por estar transbordante e irredutível ao percebido da experiência vivida.
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Referências bibliográficas

Deleuze, G & Guattari, F. Percepto, afecto e conceito in O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
Foucault, M. A prosa do mundo in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Perrone-Moisés, L. O parti pris de Ponge in Inútil poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

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