quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Conto Hiperrealista de um Cinema Terceiro Mundista


Tem coisas que só podem acontecer na Sala Walter da Silveira. O filme era Finyé, de Souleymane Cissé (1982). A Moça é repreendida por seu pai, um General do exército que ocupa o poder em Mali, por namorar um jovem pobre, colega seu de faculdade que participava no movimento estudantil contra a ditatura, onde seu pai exerce um papel importante.

“Aiiiiii, aiiiii, volta, volta, volta!! Sai, sai. O que é isso? O que está acontecendo?”.

Um menino com seus nove anos de idade sai de dentro do escuro da sala correndo feito uma liberdade, malmente contornado pela luz que emana da tela do cinema, que eu dividia unicamente com uma senhora recém-levantada.

Aiiiiiiiii. Não pode! Ficar aqui não pode.

Ela é maluca, ela é maluca – falou alto para si mesmo o menino sem camisa e de cabelos encaracolados de negritude. Entrou na fila em que eu estava sentado. A senhora se acalmou e voltou ao seu lugar. Ela é maluca, ela é maluca. Sentou ao meu lado. Tio, me dá uma moeda pra eu comprar uma comida (Tenho não).

Olhou para a tela. Que filme é esse? (Psiuuuu). Paga pra entrar é? (Psiuuuuuuuu). Tio, qual é o nome desse filme? (Esqueci). Demorou um tempinho contemplando o filme e voltou. Todo mundo deste filme é negro, é? (É). É no Brasil, né Tio? (É na África). Onde? (África) Aquele é polícia? (É, é o General). O que é que ela está falando. (Ela está oferecendo um dinheiro para ela). Por que elas se vestem assim? (É por que lá a roupa é diferente daqui). E ela é mulher do General? (É) E aquela (Também). Ele tem duas mulheres. Eta, ele tá batendo nela, eta!!!!! (Psiiiiiiiiiiiiiu. Fala baixo, aqui não pode falar alto, não). Por que ela bateu nela? Ciúme, né? (Não sei, não consegui entender). Ele é rico? E ela quem é? (É eles são ricos, ela é a filha do General). Muda a trama. E esse? Ele é Chefe, mas é pobre, né? (Ele é avô de Bá, o chefe sábio de um povo lá da Àfrica. Ela é apaixonada pelo neto dele). A moça se agacha para pegar água em um poço na casa de Bá, seu amado pobre. Este poço aí existe até hoje, sabia? (Sabia). Este balde também. Olha, a maluca está indo embora, ainda bem. Fica olhando para trás contemplando a imensidão daquele cadeirume depois da senhora se retirar.

Tio, eu sou negro? (Você é negro?). Sou (Então, você é).

O menino olha para trás num susto e vê o lanterninha atirando luz por todos os cantos, passa pela fila em que estávamos. O menino tinha se abaixado, mas - no retorno - a luz lhe acertou em cheio.

Estou vendo o filme. (Pode deixar ele aí, que ele está tranqüilo). [Vamos, vamos, não pode ficar não. Este filme não é para crianças, vamos]. Ele passa correndo pelo lanterninha e some na escuridão de onde tinha vindo.

domingo, 16 de novembro de 2008

BAMAKO: a potência da fabulação e os limites da democracia

Crítica Vencedora do I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira -
Também disponível: www.dimas.ba.gov.br/2008.1/dastaques/2008.11/critica2_marcelo_oliveira.doc
Por Marcelo Matos de Oliveira





Desta vez, não foi na cidade francesa de Evian, nem em Sea Island nos Estados Unidos, muito menos em Heiligendamm na Alemanha: lugares que sedearam as reuniões de cúpula do G8. Agora, a sede das decisões é um quintal humilde de uma casa africana em Bamako, capital de Mali, um dos países mais pobres do mundo: um cenário esquisito onde advogados e juízes dividem espaço com bodes, cachorros, crianças e mulheres que lavam e tingem roupas. É com o nome da cidade onde é realizado este julgamento contra o FMI e o Banco Mundial que Abderrahmane Sissako batiza o seu filme.

Se o G8 são reuniões de cúpula - onde se gasta uma fortuna -, a reunião em Bamako é pobre, tão precária quanto o cotidiano do povo de Mali. O filme, quase completamente rodado em cenas externas, é um tribunal a céu aberto, como se a ferida da África estivesse aí, exposta ao mundo. A câmera simples, com poucos movimentos, revela a simplicidade de um cinema que quer expressar a simplicidade de seu povo.

Mais do que um espaço simbólico criado para dar voz àqueles que não tem, o filme é um Acontecimento. Advogados africanos são convidados para elaborar suas defesas e atuarem de improviso frente ao juri, a câmera, ao espectador. Desta maneira, o que Bamako opõe a ficção não é o real - não é a verdade que sempre é o ponto de vista dos colonizadores e dos dominantes-, mas sim a “função fabuladora dos pobres” - como gosta de dizer Gilles Deleuze - e sua potência de produzir memórias e lendas. Assim, Bamako produz uma narrativa para os problemas do continente africano a partir do ponto de vista dos próprios africanos. É isto, mais do que as questões que se propõe a informar, a expor e a tratar, que faz de Bamako um filme político. Como disse Jean Rouch: “não será um cinema de verdade, mas a verdade do cinema”.

Sissako não opera a partir de dualismos estanques. A colonização não é dividida entre europeus e africanos. Como sabemos, uma parte dos africanos colaboraram - e foram até mesmo essenciais - no processo de escravidão e na exploração do continente. Parece ser isto o que Sissako quer dizer quanto uma família assisti na TV o western Death in Timbuku, onde cowboys brancos e negros assassinam a população negra de um lugarejo africano.

A um olhar desatento, Bamako pode ser um filme discursivo. Todavia, o falatório sempre é quebrado por imagens poéticas: seja uma criança que pega um papel de um bolo do processo e transita esquecida por entre as pernas dos adultos, seja insetos que galgam montes de areia, tal como os malineses que atravessam o deserto para tentar uma vida melhor na Europa. Todavia, a genialidade de Sissako está em quebrar o discurso dentro do próprio jogo democrático através de cantos e silêncios. Se isto acontece, talvez seja porque Sissako não acredite unicamente no poder do discurso como possibilidade de transformação social. Assim, o diretor aponta a limitação das regras da democracia que, comumente, são pautadas na linguagem, na argumentação lógica e na espera do momento que é reservado para cada pessoa falar: os preparativos para o início do processo estão ficando prontos, um senhor dirige-se ao microfone e começa a desabafar a situação de seu país, sendo logo contido por uma advogada negra que solicita que volte ao seu lugar e espere a sua vez de ser chamado. Resignado não entende como se pode dissociar a fala da vontade de falar.

Mas o tribunal de Sissako comporta formas de expressão que um tribunal comum talvez não suportasse. O discurso é interrompido, também, por senhores que cantam, dirigindo-se mais ao coração do que ao cérebro da audiência. No entanto, um dos momentos mais belos do filme, é quando um ex-professor dirige-se ao microfone e permanece, durante todo o tempo que lhe foi reservado, sem dizer nada. O silêncio não é visto por Sissako como impotência do discurso, mas como aquilo que não pode ser dito, como aquilo que não existe na linguagem, que não pertence à ordem do discurso. Existe uma dívida irreparável para com a África, e isto está tão óbvio, que não se tem mais o que dizer. A modernidade não foi concebida para os países do terceiro mundo, por aqui o que aconteceu foi uma modernidade às avessas, como diz o sociólogo Boaventura de Souza Santos. Assim, enquanto a conferência decorre, Chaka está adoecido na cama, sem remédio e sem hospital.

Talvez seja por conceber a globalização como sendo estranha aos africanos que Sissako insiste em colocar objetos modernos que não funcionam em seus filmes. As coisas produzidas do lado de lá, nem sempre funcionam do lado de cá. Se em “Esperando a Felicidade” era o pára-sol de um carro que constantemente caía tapando a visão do motorista e, também, uma lâmpada que sempre se recusava a acender; em Bamako, é um ventilador que a toda hora emperra, tal como o “projeto da modernidade” com suas promessas para solucionar as desigualdades no mundo. Por isso, o discurso lógico-argumentativo não pode dar conta do problema africano. A democracia tem que comportar outras formas de discurso, forma às vezes extrema, e talvez seja por isso que a arma do policial desaparece no meio do julgamento. Quem a pegou? O que vão fazer com ela? Terminamos o filme sem sabê-lo, talvez porque já saibamos demais. Bamako é o momento em que um quintal africano se coloca como porta-voz de todos os países do Terceiro Mundo.

Como todo esquema democrático é baseado na representatividade, não é toda a população que tem a possibilidade de participar das decisões. Assim, na porta de entrada do quintal onde acontece o julgamento tem um porteiro com uma lista na mão onde consta o nome daqueles poucos que podem entrar. Este paradoxo é expresso numa cena onde, no intervalo do julgamento, os advogados de acusação e de defesa vão falar ao celular, enquanto do lado de fora vemos alguns cidadãos que acompanham o julgamento pelo auto-falante, a estes não lhe são reservados o direito de falar, mas apenas de ouvir.

Talvez não adiante mesmo muito acompanhar todo o julgamento. Assim, em alguns momentos o auto-falante é desligado. A argumentação torna-se exaustiva e vamos caminhando para o final do filme já cansados. De repente, a câmera segue alguém para fora da plenária. O filme acaba de modo que não sabemos qual foi o resultado do julgamento. Talvez seja porque não caiba ao cinema dar um veredicto sobre a questão, mas talvez seja porque cabe ao cinema apontar a impotência do discurso e a velha estratégia de cansar a plenária para que ela perca com isso seu poder de argumentação.

E se o filme termina com uma morte é para pontuar que a vida do africano não se resume apenas à tragédia, pois ainda existem aqueles que prosseguem lutando. Com certeza, não é coincidência o fato de que já é o segundo ano consecutivo (2007 e 2008) que Bamako, capital de Mali, sedia a “Cúpula dos Pobres”, evento paralelo ao G8. O fim das utopias é para aqueles que desistiram de re-criar o mundo.

ENTRE EU ME LEMBRO E SUPEROUTRO: um ensaio sobre a imobilidade

Crítica Vencedora do I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira
Também disponível:www.dimas.ba.gov.br/2008.1/dastaques/2008.11/critica1_marcelo_oliveira.doc
Por Marcelo Matos de Oliveira



Talvez, a grande potência que um texto que Eu Me Lembro possa gerar não esteja unicamente nele, mas em um encontro com Superoutro, filme de Edgar Navarro realizado 15 anos antes. Não se trata de uma comparação, muito menos de um confronto, mas de colocar-se no meio dos dois. Uma crítica que talvez nos traga novas reflexões situa-se exatamente neste intermezzo: nem em um, nem em outro - nem em uma margem, nem na outra -, mas exatamente no meio, numa espécie de terceira margem no rio.

Comecemos por Eu Me Lembro ou o memorial de um homem que escolheu tornar-se cineasta. Na primeira parte, vemos o mundo pelo olhar de Guiga, uma criança que vai descobrindo a vida, a sexualidade, a morte de Deus, as hipocrisias da família pequeno-burguesa, o sexo... As seqüências são costuradas por uma voz-off que dá sentido à passagem de uma a outra. Esta é a parte mais singela e mais bem resolvida do filme. O olhar infantil nos faz entrar em seu mundo e vislumbrar um Brasil preconceituoso, machista, racista e hipócrita. Aqui, nos identificamos facilmente com o personagem, mesmo com a tendência da voz-off de nos tirar do filme.

Na segunda parte, o filme apresenta graves problemas. O Guiga jovem parece perder a força que o Guiga infante trazia. Se na primeira parte, a voz-off conseguia integra-se ao filme pela ingenuidade infantil, na segunda parte ela perde esta característica e em muitas vezes parece irritar o espectador. O personagem principal vai tendendo a deixar de convencer juntamente com a arte e a maquiagem, que vão se desfazendo ao longo do filme. O bigode torto do noivo na cena do casamento da irmã de Guiga é o sinal deste desmoronamento. Ainda assim, o filme mantém-se em pé; parece que vai desmoronar, mas não desmorona. Isto acontece, talvez, porque as imagens tenham saído das entranhas da memória do diretor e, assim, acabam por conseguir atualizar o espírito de uma geração sessentista. São imagens e relatos, acima de tudo, verdadeiros e sinceros. Ao final, o filme encanta como uma decepção adorável.

No entanto, o filme se diferencia da média dos filmes brasileiros pela sua construção dramática, onde o personagem não tem um motivo nitidamente definido, e pelo ponto de vista de abordagem da sociedade brasileira. Em relação a este segundo ponto, Ismail Xavier, numa entrevista a Folha de São Paulo, em 03/02/2007, dividiu os filmes realizados na retomada do cinema brasileiro em três blocos a partir dos tipos dos personagens: o pobre pragmático que ascende na vida, o sujeito da classe média ressentida e o sertão-pop pernambucano contaminado de signos do moderno. Eu Me Lembro parece fugir desta classificação mostrando-se como uma obra rara do cinema brasileiro, um filme de memórias onde a motivação principal do personagem é narrar a si mesmo.

Sabemos das dificuldades de produção e da escassez de verba que o filme atravessou. São estas dificuldades que faz de Eu Me Lembro um quase-fracasso de uma terra, a Bahia, que ficou 18 anos paralisada sem fazer um único longa-metragem (falta quebrada por Três Histórias da Bahia em 2001). Para nós, baianos, Eu Me Lembro é um filme de transição, é uma fita que abre uma gama de possibilidades e mostra a potência que a Bahia tem para fazer cinema. Potência que ficou solapada e reprimida durante toda década de 90 e que parece querer explodir em Eu Me Lembro. Talvez por isso, o filme traz mais intenção - ver a quantidade de movimentos com a grua utilizada - do que aquilo que ele realmente consegue realizar. Espírito completamente diferente de Superoutro, onde o cineasta consegue atualizar toda a sua potência.

Se Eu Me Lembro é um filme essencialmente no passado, com suas vinhetas e jingles de época, Superoutro é uma narrativa que se desenrola essencialmente no presente. O personagem é acima de tudo imanência: “acorda humanidade!”. Não é muito difícil ver neste média-metragem a vontade de potência do super-homem nietzscheano.

À imanência de Superoutro contrapomos a transcendência de Eu me Lembro. Se no primeiro o personagem fala por si, no segundo, o narrador só consegue dar sentido a narrativa através da voz-off. Ele não está mais dentro do personagem, como no filme anterior, e sim acima dele. A voz-off é a voz transcendente da consciência do sujeito pensante (o cogito cartesiano) que sobrecodifica o passado, e também as imagens, durante toda a película. Isto acontece até nos momentos em que ela se cala e os personagens entram em cena, pois não esquecemos que ali é uma memória consciente, ou uma memória voluntária do narrador, como preferiria dizer Marcel Proust. Neste sentido, Eu me Lembro é um romance de formação, é um relato sobre si mesmo, é a maneira pela qual alguém se torna o que é. Se Super Outro é o “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche, Eu Me Lembro é o “Ecce Homo” de Edgar Navarro. Também somos aquilo que contamos que somos.

Um mesmo signo - o pulo do Elevador Lacerda - marca bem as duas margens onde estão os dois filmes. Em Eu Me Lembro, Guiga é humilhado pelo pai: “Por que você não se mata menino? Se joga do elevador Lacerda” - diz. Se aqui, o pulo vem de uma causa externa, em Superoutro, o mesmo signo aparece a partir de uma potência interna de um homem que tresvalorou todos os valores e “realmente” pulou do Elevador Lacerda para voar e elevar-se sobre toda Salvador. Não há a queda em um abismo e sim um vôo sobre a fissura do mundo como vontade de vida.
Este encontro entre os dois filmes nos faz pensar em Eu Me Lembro como sendo um filme de paralisia. Paralisia que é a da própria memória que deve reter a ação do corpo para que nos lancemos no passado, mas também a paralisia da produção cinematográfica baiana durante 18 anos. Não é esta imobilidade que parece perdurar durante todo o filme?

As primeiras imagens P&B, retiradas de acervos pessoais de algumas famílias baianas tradicionais, são bem significativas. Uma em particular nos chama a atenção: uma negra põe uma maçã na cabeça, um rapaz branco com uma espingarda posiciona-se. Ela fica ali paralisada, imobilizada, esperando o branco que mira e, por fim, acerta a fruta sobre sua casa. A negra se abaixa, pega a maçã do chão e dirige-se sorrindo para a câmera mostrando o furo da bala. Imagens de um cotidiano anódino, mas carregada de sentido histórico e de sentido, também, para o próprio filme.

As últimas imagens parecem apontar no mesmo sentido. Depois de tomar um ácido lisérgico, Guiga fica imóvel, recostado numa árvore e vê desfilar na sua frente uma legião de memórias. Porém, no último plano do filme, ele vê o próprio Navarro desfazer a paralisia numa espécie de ritual: a equipe do filme gira de mãos dadas numa roda e a grua – instrumento de trabalho durante todo o filme – aparece. Plano curioso, pois ao mesmo tempo em que é o presente do diretor, é também o futuro do personagem. Mais curioso ainda, pois é o futuro do cinema na Bahia. A partir de Eu Me Lembro, podemos dizer que, finalmente, saímos da imobilidade. Que o cinema baiano seja baiano, que cinema baiano seja cinema.