terça-feira, 31 de julho de 2007

Morre Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni



"Vai grandes homens... que ao mundo mostraram signos inimagináveis. Com certeza, não seríamos o mesmo depois de vocês".
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Ontem, 31 de julho, morreu Bergman (89 anos). Hoje, o cinema continua em luto: morre Antonioni (94 anos).

sábado, 28 de julho de 2007

quinta-feira, 26 de julho de 2007

A burguesia era amante de todas artes, mas o cinema foi a arte que ela criou.

domingo, 22 de julho de 2007

NOSSA MÚSICA (trecho), Jean-Luc Godard




O homem branco jamais entenderá as palavras antigas ao ouvir os espíritos que vagam livres entre o céu e as árvores. Que Colombo vasculhe os mares para achar a Índia. É um direito dele. Ele pode dar aos nossos espíritos os nomes das especiarias. Ele pode nos chamar de 'índios vermelhos'! Ele pode distorcer todos os ares do vento norte.


Mas fora do mesquinho mundo de seus mapas, ele não acredita que haja homens que nascem iguais como o ar e água. Ele se saciou da carne de nossos vivos e dos nossos mortos! Então porque quer seguir com sua guerra mortal, até o túmulo quando não nos resta mais para dar do que quinquilharias arruinadas, algumas poucas penas pequenas para decorrar nossas pernas? Já não é hora, estranho, de nos encontrarmos frente a frente na mesma era, ambos estrangeiros no mesmo país?


Ambos como estrangeiro no mesmo país encontrando-nos à beira de um abismo. Os ventos recitarão nosso início e nosso fim, embora nossa prisão sangre e nossos dias estejam enterrados nas cinzas da lenda (com o fim em 32':19'').


EDUCAÇÃO NUM MUNDO DE IMAGENS: do visível ao invisível uma revolta sensual

por Fabio Giorgio Azevedo

“tornar sensíveis as forças
insensíveis que povoam o mundo,
e que nos afetam, nos fazem devir”



Há um momento originário de consciência da percepção, quando se começa a estabelecer sintaxes de sentido entre seus elementos formadores, onde é possível exprimir e compreender signos que se pretendem fazer comunicar graças à intersubjetividade (suposta como condição para o compartilhamento de sentido), a despeito das singulares relações forma/conteúdo que cada ator perceptivo possa produzir individualmente. Esse lugar-comum da percepção é o que possibilita a construção de discursos imagéticos que tenham em vista a transmissão de mensagens.
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Ora, num nível que podemos nominar extra-discursivo, a composição estética de uma imagem estabelece com o espectador, ainda no instante pré-predicativo, uma relação de continuidade ou ruptura no que designa a sensação diante da imagem – sensação de estabilidade, produzida pela apropriação “natural” da imagem e pelo reconhecimento de seus elementos estéticos; ou sensação de desassossego, pela inadequação da imagem aos aportes estéticos (formadores) do observador. O que está pressuposto nesse jogo é um bloco de sensações que é constituído num plano de composição - seja do fruidor das imagens, seja daquele que a lança como afecção em direção aos corpos.
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Essa potência de afetar das imagens co-cria o mundo, porque não há extramundo, isto é, a sintaxe do mundo se compõe com as subjetividades, que também o constituem e por ele são atravessadas. O composto imagem-mundo-subjetividade fabrica e veicula formas que se tornam espessas à nossa percepção compreensiva e são incorporadas efetivamente como realidade, produto dos efeitos que se prolongam através das imagens e tomam corpo nos devires humanos e inumanos do mundo.
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Desse modo, podemos já intuir a instituição estética – a normatização da “boa forma” - que passa a ser responsável pela forma-de-ver-o-mundo dos indivíduos, do que se pode dizer que seja o mundo a partir do que se vê, da relação entre o visível e o dizível, que é habitualmente tomada como uma relação de reciprocidade, de correspondência, por graus de semelhança e aproximações de vizinhança. Nesse sentido, uma forma crítica que ganha força atualmente é o exercício de desmistificação das imagens como atividade libertária, com a intenção de desaprisionar o espectador das ilusões de sua ideologia silenciosa que amolda o que parece ser moldado em-si e por-si, e que parece ter uma essência própria independente do trabalho da percepção. A atividade perceptiva, do ponto de vista de quem propõe a existência de um por detrás das imagens, é uma atividade de maculação da coisa, de impregnação da coisa pelos pré-conceitos da subjetividade que a percebe – desde o início já de modo distorcido, por assim dizer. Nessa perspectiva, que se traduz numa fenomenologia, o trabalho do educador seria “limpar” as imagens, desvencilhar o espectador do brilho ofuscante de seu próprio contorno para que se possa ver, em profundidade, o brilho próprio da coisa por ela mesma. Ainda que se abandone a idéia de captar o ser-da-coisa, já que se está mergulhado entre elas e sem a possibilidade de um “afastamento” – sendo aconselhável, metodologicamente, a descrição da implicação, do envolvimento do espectador - guarda-se, ainda assim, quando a crítica significa um desvelamento da ilusão - a saída da caverna, o descobrimento da natureza -, uma nostalgia como a que se vislumbra na voz de Caeiro, em O Guardador de Rebanhos: “as coisas são o único sentido oculto das coisas”.
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De outro modo há sempre um invisível possível constituinte de todo visível, e que é possível porquanto não existe em potência, mas é produzido (jogar mundos no mundo) em acto. E a produção, a expressão desse invisível, diz respeito a um processo de deseducação dos sentidos, de uma desterritorialização da semiótica perceptiva, de uma plissagem na articulação do real percebido e da experiência vivida, uma fissura nos clichês da significação. Isso que chamamos de deseducação dos sentidos, inspirado na opinião de Bacon quanto ao objetivo da arte, significa limar os ídolos (clichês), isto é, abrir nosso campo perceptual ao que está fora da tela, o que mantém com a tela uma relação de mútua determinação, mas que ali não se explicita, pois diz respeito ao bloco de sensações que se forma na fusão da imagem com o espectador, criando entre os dois uma zona de indiscernibilidade.
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É justamente nessa zona obscura onde não está mais em jogo nem a imagem nem tampouco o indivíduo (ainda que um e outro sejam parte do plano de composição, formando um bloco), que os devires de todo tipo, as sensações mais contundentes e inimagináveis podem surgir como uma espécie de iluminação, produzindo outros arranjos na organização da percepção e delineando outras subjetividades, e ainda outros devires, compondo com as imagens um modo de expressão que cria - o invisível.
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A “revolta sensual” acontecerá quando, seguindo as linhas de uma atividade de despersonalização do indivíduo pela desconstrução ativa do plano estético onde se erige seu modo de ver as coisas, pode-se produzir uma perspectivação que libera o mundo, ou melhor, atinge a carne do mundo na construção de um plano infinito de variedades, e que não se reduz ao real observado e compartilhado. Pois com o desvio da percepção habituada há também o desvio da existência costumeira, do habitar-se a si mesmo como uma repetição identitária. E, nesse sentido, a criação de um território estético, experimentativo e próprio - tornando-se o artista de si, escultor incessante de modos de existir -, é condição para criação do mundo, para expressão do invisível, para invenção da existência como obra aberta, inacabada não porque incompleta, e sim, por estar transbordante e irredutível ao percebido da experiência vivida.
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Referências bibliográficas

Deleuze, G & Guattari, F. Percepto, afecto e conceito in O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
Foucault, M. A prosa do mundo in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Perrone-Moisés, L. O parti pris de Ponge in Inútil poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

A EXPLICITAÇÃO DO MÉTODO NO AUDIOVISUAL

(trecho de uma conversa realizada por e-mail entre Marcelo Matos e Aline Frey, 22/04/2006)

Retornando aos neo-realistas... Os neo-realistas conseguiram produzir, talvez até mesmo sem querer, todas essas imagens-tempo, das quais falamos com Deleuze no outro e-mail. No entanto, a uma outra imagem que vale a pena ser considerada que seria uma espécie de imagem igual aquela que presenciamos no meio de um sonho e que faz você se relembrar: “ Isso é um sonho”. Uma imagem que lhe relembra um outro estado de consciência, a vigília no caso, mas sem lhe retirar do sonho no qual você estava imerso.

Não sei como chamaríamos essa espécie de imagem. Mas enfim... Os neo-realistas ainda se instauravam num cinema-representação. Eles acreditavam que fazendo um cinema com os atores do próprio contexto em que iriam filmar, estariam criando uma nova-realidade, talvez mais convincente do que aquela filmada com atores profissionais. Aqui temos a idéia de que o filme é uma obra fechada e que cabe ao diretor não deixar nada vazar para que o espectador tenha a nítida sensação de que tudo aquilo é real, de que aquilo é a Verdade. È neste sentido de que falamos de um cinema-representação.

Com Glauber Rocha, por exemplo, o filme cria uma abertura aterrorizadora que chega ao seu ápice em A Idade da Terra, um filme completamente aberto que escancara os seus artifícios, que mostra a plasticidade objetal dos atores (“aquela cena de Glauber segurando o rosto de um ator e balançando-o como se fosse um boneco”), que mostra como o filme foi feito. "Eu Me Lembro" de Navarro deixaria essa sensação no final, quando depois de uma série de lembranças psicodélicas (imagem-tempo) a grua aparece na festa e o diretor rapidamente escorrega pelo canto da tela. É como se depois de uma longa viagem... “tudo o que se passou não passou de um filme”.

Se o mundo é um conjunto de imagem, inclusive o nosso próprio corpo, como disse H. Bergson, a nossa memória é uma ilha de edição.

Não tenho ainda um conhecimento histórico do cinema para precisar quando o cinema começou a mostrar os seus artifícios (isso daria até uma pesquisa interessante: como o cinema se mostrou em quanto cinema em ato?). Mas o que interessa é precisar exatamente esse deslocamento da 'imagem como representação de um território' para a 'imagem como modo expressivo do território'. A pergunta não seria mais “que imagem escolheríamos para nos representar” e sim “com qual imagem queremos expressar o que temos a dizer”. Um cinema máquina-de-guerra e não mais um cinema que representa o real.

Assim, se falamos em vídeo-processo estamos nos referindo a um vídeo-método; um filme que não deixa o espectador sair dele como se o filme fosse uma verdade. Um filme que constantemente relembraria, através de seu próprio método de realização, ao espectador: “não se iluda. Isso é um filme”. Talvez seja nesse sentido que Dubois desloca a “impressão da realidade” do cinema e a substitui por uma vertigem do vídeo. Aquela vertigem de estar num sonho fugindo de algo e de repente nos precipitamos num abismo. Ninguém mais irá encobrir o abismo que está logo abaixo de seus pés. Ninguém mais pensará por ninguém. O abismo será, a partir de agora, a condição da experiência do audiovisual.
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PS: Olha só como este texto do início de 2006 se aplica a Santiago de João Moreira Salles que assistimos semana passada.

TÃO LONGE, TÃO PERTO


No alto de uma estátua, dois anjos conversam em pensamento:


- Por que elas [os mortais] nos afastam cada vez mais? - pergunta um anjo

- Porque temos um inimigo poderoso - responde Raphaela

- As pessoas acreditam mais no mundo do que em nós.

- E para acreditar ainda mais criaram imagens para tudo. Elas esperam que as imagens afastem seus medos, realizem seus sonhos, ofereçam-lhes prazer, satisfaçam seus desejos - continua Raphaela.

- Os homens não dominaram a Terra, foram dominados.


(WENDERS, Win. Tão Longe, Tão Perto, 42':20'')

GLAUBERIANAS



Glauber Rocha é que nem Augusto dos Anjos, só se entende se ler gritando.

domingo, 8 de julho de 2007

AS RUAS DE CASABLANCA (ALI ZAOUA), de Nabil Ayouch: um neo-realismo fantástico

por Marcelo Matos de Oliveira



Olha só... Eis que assistimos um filme que se coloca na máxima tensão que viemos nos colocando na série NIILISMO E SINCRETISMO [ver postagens anteriores].

Quando vi a capa do filme, resiti em assisti-lo. Pensei que iria encontrar mais um filme sobre meninos de rua, que cheiram cola, que assaltam para comprar comida e por aí vai. Não foi nada disso. Ainda bem que assistimos. Vimos um belo filme, não foi?

Para mim, que trabalhei como educador com esta galerinha de rua, o filme conseguiu uma generalidade da narrativa de modo que reconheci as histórias dos meninos de lá com as daqui de Salvador. Talvez, não seja insensato dizer que aquela narrativa poderia acontecer em qualquer grande cidade de qualquer país do terceiro mundo. Gostaria de ter assitido este filme com os meus ex-alunos.

O filme marroquino "As Ruas de Casablanca" tenciona a dura vida dos meninos em situação de rua da cidade marroquina e a utopia (afetos alegres grupalmente construídos) que os mantém vivos e unidos na busca da Ilha com Dois Sóis.

A infância desastistida (uma das consequências do processo de modernização-colonização dos países terceiro-mundistas ) e a realidade mágica (que no filme se extrema com o uso de desenhos animados e computação gráfica para salientar a imaginação dos personagens) a toda hora são jogadas uma na outra. Ora é a dura vida que se joga na imaginação, ora é a imaginação que resolve fazer-se realidade.

Este vai e vem, já está marcado logo no começo do filme. Durante os créditos iniciais, temos - como textura de fundo - uma pintura que mais a frente vamos descobrir que é o sonho de Ali Zaoua. Sobre ela, a voz de um menino narra a dura realidade de sua vida. Na cena seguinte, descobrimos que esta voz é de um menino de rua (Ali Zaoua) que aparece numa tela reduzida dando entrevista a uma repórter de TV. A redução da tela tem um efeito de minimizar a "vida real" do personagem (principalmente aquela vinculada pelos meio de comunicação) em relação a potência imaginativa que o menino tem. É como se já no começo do filme o diretor informasse: 'está não é uma estória-clichê sobre meninos que vivem na rua, sobre o que eles falam para as televisões, para o repórteres ou até mesmo para as madames as quais eles pedem dinheiro'. Durante o filme, descobrimos que quase tudo aquilo que ele falou nesta entrevista era mentira, menos o seu sonho de tornar-se um marinheiro. O sonho é a única verdade que pode ser enunciada ao mundo. A verdade da arte.

Mas como o filme consegue sair do clichê?

A estória logo vai precisar de uma morte. É assim que nas primeiras sequências, o personagem principal (que no título original é o nome do filme: "Ali Zaoua") morre. Exatamente quando contava para o seu melhor amigo que iria partir para Ilha dos Dois Sóis, exatamente quando a utopia estava ganhando força, ela é interrompida por uma pedrada em sua cabeça, por uma gangue que chega gritando uma vontade de nada: "a vida é uma merda".

A morte de Ali vai gerar um virtual que não se cansará de atualizar-se durante todo o filme. Ali Zaoua morre, mas ele continuará presente durante toda a película: no seu corpo que fica escondido dentro do buraco, na búsula que ele tinha acabado de receber de um marinheiro, no seu amigo que deseja tomar seu lugar como filho, no dinheiro que pedem na sinaleira, na crença-utópica dos meninos na existência da Ilha dos Dois Sóis e na pergunta que sempre retornar "se os dois sóis se põem ao mesmo tempo". A morte de Ali promove uma aventura que tira o filme do clichê, pois - depois dela - todos os atos dos personagens serão remetidos a ele e, por isso, ganharão um outro sentido do que aqueles comumente atribuídos pela racionalidade-mediana.

Os desejo de Ali estava num mundo que não existia - pelo menos não existia ainda: numa ilha que tinha dois sóis e que para chegar lá, ele teria que se tornar um marinheiro. Ou seja, um mundo impossível (sabemos racionalmente que não existe uma ilha com dois sóis no planeta Terra e a pegada neo-realista que o filme tem sustenta está premissa no filme) poderia levar áquela criança a um outro mundo possível: a saída deles das ruas já que o mundo das embarcações tinha se aberto para ele através de um mundo racionalmente inexistente. Um neo-realismo fantástico.

É o toque fantástico que abre a possiblidade, que em "Ladrões de Bicicleta" de De Sica e claro no contexto histórico do pós-guerra em que o filme aconteceu, não havia. "Um pouco de possível senão nos sufocamos". Em meio a uma infância desasistida povoada de escombros e violência, um "território suspenso" é criado, um território que possibilita a fuga, mas não a fuga do covarde que foge a luta e que se esquiva dela. Fugir, mas no meio da fuga inventar uma arma.

Os meninos mostram que o Fim das Utopias é para aqueles que têm preguiça de re-criar o mundo.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

NIILISMO E SINCRETISMO (III): POR UM CINEMA MINORITÁRIO

por Marcelo Matos de Oliveira
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Primeiro, no que concerne ao que me referi como alegria e como tristeza, duas palavrinhas faladas cotidianamente, mas que na conversa abaixo [Niilismo e Sincretismo postado em 27 de junho de 2007] me referi a elas num sentido espinosista. Por isso fiz questão de colocar entre parênteses: “tristeza (a decomposição dos corpos e das idéias) e a alegria (a composição dos corpos e das idéias)”.

A alegria enquanto composição dos corpos e/ou das idéias significa dizer que quando sentimos alegria é porque uma determinada idéia ou um determinado corpo entrou em composição com o meu corpo e/ou idéia aumentando, com isso, a nossa potência. A nossa consciência age recolhendo deste encontro o efeito de alegria. Depois do encontro, ambos saem mais potentes do que eram. Por exemplo, quando converso alguém e esta pessoa compõe com o que eu estou pensando e vice-versa, aumentamos com isso a nossa potência.

Porém, se ao invés de uma boa conversa fosse uma briga, aí a relação entre os corpos não seria mas de composição e sim de decomposição, de tristeza.

Se Espinosa é o príncipe dos filósofos, é por que a sua Ética denuncia os afetos tristes. “Espinosa” – diz Deleuze – “não cessa de denunciar três espécies de personagens: o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder e o homem que entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral” (DELEUZE, p. 31). Respectivamente, o escravo, o tirano e os guardiões das verdades (Deleuze fala do padre).

Seguindo o rastro de Espinosa podemos dizer que a alegria dos negros da Bahia de outrora é um efeito de um movimento de re-existência (existir de uma outra forma). Formas de estar-juntos. E não apenas de um olhar que se dirige àquela época querendo recolher apenas alegria. Já não somos tão nostálgicos assim, né papá?

Numa Bahia em que Gregório de Mattos vociferava "Triste Bahia! Ó quão dessemelhante. Estás e estou do nosso antigo estado!", as festas, o lundu, a umbigada eram momentos, com certeza muito poucos, em que os negros eram livres, que deixavam de serem escravos e tornavam-se reis e rainhas. Poderiam dizer que estamos falando de um território simbólico, já que o mundo "real" era duro e cheio de pelourinhos. E isto ainda perdura até hoje, já que sofremos seqüelas do processo de colonização escravocrata.

Mas é o efeito da alegria, que quero pontuar - que não é uma alegria falsa, a não ser que tomemos "alegria falsa" como "alegria passageira". Porém mesmo passageira é a alegria que garante o bom encontro entre os corpos e as idéias (Espinosa falaria o contrário: é o bom encontro que gera a alegria). E é exatamente pela capacidade de termos bons encontros que podemos estar-juntos e só estando juntos para poder reinventar o mundo. (Claro que eu estou considerando aqui de uma práxis deste estar-junto).

Se o “desencantamento do mundo” foi a falta de sentido que as religiões operaram sobre a magia, instituindo uma outra vida” nos céus em contraposição aos deuses terrenos, como rastreou Max Weber; se o “desencantamento do mundo” foi a falta de sentido que a ciência operou na religião através da busca de nexos causais para explicar tudo, será que podemos dizer que o nosso mundo nordestino é completamente desencantado?

O que é o Ilê passando? E aquela alvejante manta que é os Filhos de Gandhi? Quem é Riachão que anda pelo Garcia com suas roupas coloridas, sua toalhinha alva no pescoço a lançar gritos ao ar? O que é o Nego Fugido de Acupe com a boca rubra de sangue a escorrer? E os Orixás que ainda não se cansaram de encantar os terreiros? Ou o toré dos Trucás, estes índios guerreiros de nosso sertão, que batem os pés ao chão para os encantados descerem? Em suma: se nunca fomos modernos, como podemos agora ser niilistas?

E aí a questão resvalada para área de nosso interesse: como pensar um cinema que aumente a nossa potência como latino-americanos, nordestinos, índios, negros, mulheres, sertanejos? Como um cinema pode forjar uma identidade que aumente a potência daqueles que a tomam? Como pensar um cinema minoritário que faça o cinema das elites gaguejar numa variação contínua, que faça o Cinema variar numa multiplicidades de cinemas. A(r)tivismo. "O cinema tem que ser político" – bem disse Diego. Se há um Ecossistema Fílmico deverá haver uma Ecopolítica dos Signos Audiovisuais. Está fundada uma nova área de estudo :-).

NIILISMO E SINCRETISMO (II): O NEO-REALISMO LATINO-AMERICANO.

por Diego Haase


Se só a alegria pode responder pela tristeza, apenas teremos no nosso roteiro simples atores passivos de um ecossistema que não pode ser transformado por eles mesmos, no qual apenas interferem com crenças e sensações traídas para contrapor com a sua tristeza momentos e encontros que terminam se tornando uma solidão. Como vemos o desencanto neo-realista sim! Se “aplica” ao cinema Brasileiro e Nordestino como por exemplo no “o céu de Suely” de Karim Ainouz, onde a personagem principal, Hermila , sofre o abandono e o desamparo e decide rifar seu próprio corpo , ao igual que no média de De Sica “A Rifa” do final dos anos 60, onde Sophia Loren se oferece como prêmio de uma loteria em Nápoles. Filmes que concentram um olhar neo-realista dentro da realidade que abordam pessoas simples, porém universais, tratando dos problemas humanos que se manifestam com o “sincretismo” do acontecer em Nápoles nos anos 60 ou no sertão do Ceará no ano 2006, caracterizando o ressurgimento de sistemas narrativos do neo-realismo no terceiro mundo, seja no Brasil, na África ou na Ásia. .

O Brasil, e o Nordeste, em particular a Bahia, tem sim, uma diferença com outros paises do “terceiro mundo”, algo que há séculos vira um espanto em torno de uma “falsa alegria”, como nenhum outro pais na América Latina, as ligações coloniais de subordinação e paternalismo estão fortemente atualizadas, o barroco da história, ou bem, essa modernidade que não chega romantizando o passado, faz que o império não seja “o inimigo”, mas sim o percussor de uma falsa identidade que determina essa diversidade de fronteiras virtuais e falsos signos de pertença, para os quais se há misturado a vida como função (olhares meramente funcionalistas no cinema) e a vida da tradição atrasada na modernidade, perpetuando assim, uma continuidade bélica de dominação colonial.

Teríamos que reconhecer que essa cultura de “re-existência” é - de fato - uma RESISTÊNCIA! que a diferencia de “coexistir”, como parte diversificada do mangue-, procura lutar a séculos pelos seus direitos. Já que ainda hoje em “nossos dias” o Estado continua oprimindo as maiorias excluídas, negros e negras, índios e índias, sertanejos e sertanejas, herdeiros da luta contra a escravidão, e que tem que continuar RESISTINDO! à pobreza.

Quem olha para a Bahia barroca reconhecendo nela uma eterna alegria de superação do sofrimento em pro de um olhar pra alegria, embora com a ajuda dos Deuses africanos, enfrentando a evangelização de massas afro-descendentes, sabemos que não enxerga uma superação enquanto à escravidão, embora esta se chame pobreza e abranja um 80% dos baianos em sua maioria negros. Isso não é diversidade, senão a realidade de uma população que continua sofrendo um sistema escravocrata agora manifestado pela exclusão social de viver na pobreza, enquanto uma minúscula minoria da aristocracia dominante de filhos/as do império, se apodera dos símbolos e das artes produzidas por uma industria cultural milionária no Brasil, uma minoria de “acomodados” dispõe dos usufrutos da maioria dos aparelhos culturais do Estado e é, também, a distribuidora e a pioneira das novas tecnologias com as quais decide e vislumbra com um carnaval de mangues e siris diversificados, o poder de marcar o ritmo da chegada da modernidade e suas tecnologias. Isso é o que degrada o mangue, tão diversificado, o que trai à tradição, esquecendo dos índios, do sertão e da África...

Onde diz respeito ao desencanto, dos filmes e suas realidades latino– americanas não vejo ali uma tristeza, senão uma massa em estado de unidade que se reconhece e se identifica pela sua situação ante esse desamparo, reconhecendo uma identidade coletiva, frente a qual nem a religião nem o Estado garantem a tradição: uma guerra no filme de Gobadi “tartarugas podem voar”, um estado de decadência no pântano de Lucrecia Martel. Estes, entre outros tantos, são ecossistemas fílmicos onde o encontro dos personagens e sua revolta contra os falsos estandartes da realidade, recaem com a sua fúria num olhar de mundo que rebela onde as partículas da tradição foram traídas e ultrajadas, e proclama um grito no silêncio das sensações de quem assiste esses filmes.


Making off do Filme Tartarugas Podem Voar
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O cinema tem que ser político. A política do filme é aquela que se manifesta em prol de denunciar o niilismo, a falsidade encantada dos signos já há tempo sem sentido; aquela que re-significa as verdades absolutas de dominação ideológica, dando lugar a novas vozes e sentidos que determinem um olhar comprometido sobre as sensações que atingem o ser social e a sua atualidade, seja esta no Irã ou na Argentina, universalizando os signos em prol de uma linguagem cinematográfica que comunique através das fronteiras pré-estabelecidas, e leve em si mesma uma verdade transformadora, que além de encantar o olhar, revolte a alma e esquente o sangue da nossa transcendência, através de personagens revolucionários que abandonados dentro de um pântano, ou uma guerra, com a força da sua alegria ou da sua tristeza, possam projetar a liberdade!