sábado, 20 de dezembro de 2008

Banco de Dados de Roteiros

Simplesmente surreal!

Está disponível na internet o "http://www.imsdb.com" (Internet Movie Script Database) um banco de dados com roteiros na íntegra. Uma pena que tudo esteja em inglês, mas ainda assim vale a pena. Não explorei ainda, mais tive a felicidade de topar com o roteiro dos "Os pássaros", "A Aventura" de Antonioni e de "Babel" do Arriaga, por exemplo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS, de Nelson Pereira dos Santos, 1971


Poderia ter sido aquela mesma história escrita por Hans Staden. Um náufrago europeu que é capturado por uma tribo Tupinambá para ser devorado num ritual antropofágico. Passa um longo tempo entre os índios aos cuidados de uma cunhã que tem a função de cuidar e engordá-lo para ser abatido.

Na versão oficial de Hans Staden, ele consegue fugir engabelando os índios com sua lógica cristã de um Deus mais poderoso que os deuses dos indígenas. A versão mais lógica, no entanto, era a de que Hans Staden era um chorão e os tupinambás se recusavam a comer seres covardes, já que comer o outro significava também adquirir determinadas propriedades de sua essência (ou melhor, incorporar o incorporal). Para o ritual funcionar, era necessário que o devorado fosse um guerreiro, com coragem e sem medo da morte.

Provavelmente, o final do filme foi inspirado no “Tratado Descritivo do Brasil de 1587” onde Gabriel Soares de Souza conta que era muito comum o apaixonamento daquele que iria ser devorado pela cunhã que dele cuidava. Eles fugiam e iam ter o filho em outro lugar, começando nova vida longe da aldeia.

Mas a genialidade de Nelson Pereira dos Santos modifica esta narrativa dando um sentido mais digno e ao mesmo tempo mais perverso. Um sentido que localiza o ritual antropofágico dentro da inevitabilidade da contradição do processo de colonização.

No dia anterior ao ritual, a cunhã e o europeu estão sozinhos numa linda praia deserta.

- Chorarás? – pergunta a cunhã
- E tu? – replica o francês.
- Sim, ficarei triste.
- Mas logo me comerás.

Num flerte, ela começa a seduzi-lo ao mesmo tempo em que lhe conta como será o ritual.

- Que devo fazer durante a festa? – pergunta o gringo.
- Mostrar que és valente.
- Tens que correr... e todos nós correremos atrás de ti.
- Corre velozmente como um guerreiro. Não conseguirás escapar, mas serás respeitado. Irão trazer-te de volta e as mulheres pintarão a tua cabeça. Terás que dançar por um instante, amarrado a uma corda. Cunhambebe irá trazer a ibirapema [um tacape usado pelos tupinambás]. Deixarão que tu atires frutas e pedras naqueles que irão te comer. Então Cunhambebe dirá: "Estou aqui para te matar. Porque tua gente matou muitos dos nossos." Deves responder: "Quando eu morrer meus amigos virão para me vingar."
- Repete!
- Meus amigos virão para me vingar.
- Não..."Quando eu morrer meus amigos virão para me vingar."
- Quando eu morrer, meus amigos virão para me vingar.
- Então Cunhambebe levantará a Ibirapema. Irá golpear-te bem na cabeça.
- E depois?
- As mulheres jogarão água quente sobre teu corpo, cortarão os teus braços e as pernas e todos irão comer um pedaço.

Chegou a hora e o francês comporta-se como um digno guerreiro aceitando o seu fim pelo amor de sua amada cunhã. Profere a frase que aprendera no dia seguinte e a Ibirapema desce sobre sua cabeça.

Além do fato de Nelson ter modificado a narrativa para uma dignidade do europeu em ser devorado. A frase “Quando eu morrer meus amigos virão para me vingar” - que a sociedade tupinambá, através da cunhã faz o francês dizer - é completamente dúbia. Uma coisa era um tupinambá ouvir isto de um tupiniquim, para quem a guerra também era o motor da sociedade. Uma guerra ética que visava a perpetuação de ambas as tribos num território comum. Uma outra coisa é ouvir isto da boca de um europeu no meio de um ritual antropofágico.

E os amigos do europeu cumpriram a promessa e vieram trazendo a infelicidade, o ciúme, o niilismo, a fome e a doença para a Terra Brasilis.

Com certeza uma das grandes cenas do cinema nacional.

Obs: Os diálogos foram retirados da legenda traduzida por mfcorrea da comunidade Making Off pois o filme é falado em tupi e em francês.