domingo, 8 de julho de 2007

AS RUAS DE CASABLANCA (ALI ZAOUA), de Nabil Ayouch: um neo-realismo fantástico

por Marcelo Matos de Oliveira



Olha só... Eis que assistimos um filme que se coloca na máxima tensão que viemos nos colocando na série NIILISMO E SINCRETISMO [ver postagens anteriores].

Quando vi a capa do filme, resiti em assisti-lo. Pensei que iria encontrar mais um filme sobre meninos de rua, que cheiram cola, que assaltam para comprar comida e por aí vai. Não foi nada disso. Ainda bem que assistimos. Vimos um belo filme, não foi?

Para mim, que trabalhei como educador com esta galerinha de rua, o filme conseguiu uma generalidade da narrativa de modo que reconheci as histórias dos meninos de lá com as daqui de Salvador. Talvez, não seja insensato dizer que aquela narrativa poderia acontecer em qualquer grande cidade de qualquer país do terceiro mundo. Gostaria de ter assitido este filme com os meus ex-alunos.

O filme marroquino "As Ruas de Casablanca" tenciona a dura vida dos meninos em situação de rua da cidade marroquina e a utopia (afetos alegres grupalmente construídos) que os mantém vivos e unidos na busca da Ilha com Dois Sóis.

A infância desastistida (uma das consequências do processo de modernização-colonização dos países terceiro-mundistas ) e a realidade mágica (que no filme se extrema com o uso de desenhos animados e computação gráfica para salientar a imaginação dos personagens) a toda hora são jogadas uma na outra. Ora é a dura vida que se joga na imaginação, ora é a imaginação que resolve fazer-se realidade.

Este vai e vem, já está marcado logo no começo do filme. Durante os créditos iniciais, temos - como textura de fundo - uma pintura que mais a frente vamos descobrir que é o sonho de Ali Zaoua. Sobre ela, a voz de um menino narra a dura realidade de sua vida. Na cena seguinte, descobrimos que esta voz é de um menino de rua (Ali Zaoua) que aparece numa tela reduzida dando entrevista a uma repórter de TV. A redução da tela tem um efeito de minimizar a "vida real" do personagem (principalmente aquela vinculada pelos meio de comunicação) em relação a potência imaginativa que o menino tem. É como se já no começo do filme o diretor informasse: 'está não é uma estória-clichê sobre meninos que vivem na rua, sobre o que eles falam para as televisões, para o repórteres ou até mesmo para as madames as quais eles pedem dinheiro'. Durante o filme, descobrimos que quase tudo aquilo que ele falou nesta entrevista era mentira, menos o seu sonho de tornar-se um marinheiro. O sonho é a única verdade que pode ser enunciada ao mundo. A verdade da arte.

Mas como o filme consegue sair do clichê?

A estória logo vai precisar de uma morte. É assim que nas primeiras sequências, o personagem principal (que no título original é o nome do filme: "Ali Zaoua") morre. Exatamente quando contava para o seu melhor amigo que iria partir para Ilha dos Dois Sóis, exatamente quando a utopia estava ganhando força, ela é interrompida por uma pedrada em sua cabeça, por uma gangue que chega gritando uma vontade de nada: "a vida é uma merda".

A morte de Ali vai gerar um virtual que não se cansará de atualizar-se durante todo o filme. Ali Zaoua morre, mas ele continuará presente durante toda a película: no seu corpo que fica escondido dentro do buraco, na búsula que ele tinha acabado de receber de um marinheiro, no seu amigo que deseja tomar seu lugar como filho, no dinheiro que pedem na sinaleira, na crença-utópica dos meninos na existência da Ilha dos Dois Sóis e na pergunta que sempre retornar "se os dois sóis se põem ao mesmo tempo". A morte de Ali promove uma aventura que tira o filme do clichê, pois - depois dela - todos os atos dos personagens serão remetidos a ele e, por isso, ganharão um outro sentido do que aqueles comumente atribuídos pela racionalidade-mediana.

Os desejo de Ali estava num mundo que não existia - pelo menos não existia ainda: numa ilha que tinha dois sóis e que para chegar lá, ele teria que se tornar um marinheiro. Ou seja, um mundo impossível (sabemos racionalmente que não existe uma ilha com dois sóis no planeta Terra e a pegada neo-realista que o filme tem sustenta está premissa no filme) poderia levar áquela criança a um outro mundo possível: a saída deles das ruas já que o mundo das embarcações tinha se aberto para ele através de um mundo racionalmente inexistente. Um neo-realismo fantástico.

É o toque fantástico que abre a possiblidade, que em "Ladrões de Bicicleta" de De Sica e claro no contexto histórico do pós-guerra em que o filme aconteceu, não havia. "Um pouco de possível senão nos sufocamos". Em meio a uma infância desasistida povoada de escombros e violência, um "território suspenso" é criado, um território que possibilita a fuga, mas não a fuga do covarde que foge a luta e que se esquiva dela. Fugir, mas no meio da fuga inventar uma arma.

Os meninos mostram que o Fim das Utopias é para aqueles que têm preguiça de re-criar o mundo.

Um comentário:

poetadasolidão disse...

Boa noite, Marcelo!

Parabéns pela exegese da narrativa de Nabil Ayouch a qual é a bela expressão do neo-realismo e da técnica cinematográfica contemporênea. Ao ver o filme me veio a mente alguns aspectos da narrativa de Capitães da Areia de Jorge Amado. Fato este que me despertou para um estudo detalhado e bom base científica.