quarta-feira, 13 de junho de 2007

NASCIDOS EM BORDÉIS, de Ross Kauffman e Zana Briski, 2004


por Wilson Alves Senne
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Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo a uma arranhadela em meu dedo” .
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Esta frase do Tratado de David Hume introduz o tema das paixões como modo primitivo de existência, como existência sem qualidades representativas, como um modo de afecção diferente do modo como nos afetamos socialmente. Ela recoloca a grande diferença que há entre aquilo que nos concerne pessoalmente e o que diz respeito aos outros. Adam Smith já havia comentado a frase de Hume dizendo:
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“Se ele estivesse para perder seu dedo mindinho amanhã, não dormiria esta noite. Contudo, uma vez que não os viu, vai roncar profundamente a noite toda, a despeito da ruína de centenas de milhões de seus irmãos, e a destruição dessa multidão imensa interessa menos a ele do que seu insignificante drama pessoal.” (A. Smith, Teoria do Sentimento Moral)
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Esta frase e comentário vem ao propósito do filme que assistimos (Nascidos em Bordéis – de Zana Briski e Ross Kauffman , 2004) para ilustrar a que ponto nossa preocupação e nossas ações morais são engendradas não pela lógica das relações entre seres humanos, mas pela proximidade, pela visão e percepção da dor dos outros como se tal dor fosse nossa, ou de alguém próximo.
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O que o filme faz, provocando a compaixão em pessoas do mundo todo ( ver por exemplo os comentários do filme no site http://www.interfilmes.com/), é construir narrativamente essa proximidade, fazendo uso de uma porção de técnicas, desenvolvidas pelo cinema (e desde antes, pelas narrativas literárias), para aumentar o sentimento dessa proximidade. Usar a narrativa em off em primeira pessoa, por exemplo, ou explorar em close as faces e os olhos (lindos olhos negros, aliás...) das crianças contra a luz, ou colher a narrativa com toda expressividade que um depoimento não ensaiado pode envolver, ou contrastar imagens de uma realidade deprimente com os dizeres de esperança, projetos e sonhos das crianças, ou empregar recursos sonoros (trilhas musicais pungentes) para intensificar efeitos emocionais, etc.
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Através desses artifícios miméticos, os diretores conseguem uma proeza há tempos explorada pelos romancistas (e desde muito antes, pelos sofistas): estabelecer conosco uma relação de proximidade com pessoas que não conhecíamos, ligando-as a nós, envolvendo-as emocionalmente conosco, despertando em nós o sentimento humanitário por elas.
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Thomas Laqueur (in Corpos, Detalhes e a Narrativa Humanitária in Lynn Hunt, A Nova História Cultural, Martins Fontes, 2001) situou o começo do século XVIII europeu como um momento histórico em que, ao mesmo tempo que o surgimento do romance, prodigalizaram outros discursos humanitários, formando todo um corpo de narrativas que passou a abordar, de forma extremamente minuciosa, o sofrimento e a morte de pessoas comuns, objetivando-se com isso ligá-las a nós, construir um público de massa humanitariamente sensibilizado. As “Humanidades” e depois, as “Ciências Humanas”, muito provavelmente não existiriam sem essa construção antecipadora (do Homem e do humanismo) feita por narradores muito habilidosos (a exemplo de Victor Hugo com seu Os miseráveis, ou Castro Alves e Navio Negreiro, etc...) .
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No que tem positivo, a habilidade em construir narrativas tocantes pode “despertar” pessoas para uma causa, para o sentimento de uma urgência que está na base de muitas “conversões” a grandes bandeiras de luta sociais (quantas ONGs não começaram a partir de um relato! – a exemplo do filme em questão, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro e provocou o surgimento da ONG Kids-with-cameras – cf. www.kids-with-cameras.org/home )
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Por outro lado, no que tem de negativo (tal como já acusavam os “dramaturgos de protesto” – Ibsen, Artaud, Pirandello, etc - contra o que chamavam “teatro da cebola”, o teatro feito para arrancar lágrimas da platéia), Bertold Brecht já acusava as narrativas envolventes como exploração do sentimentalismo fácil com fins de iludir os sentidos e retardar as consciências para a verdadeira transformação social. Enquanto choramos por meia dúzia de crianças pobres indianas, projetadas numa tela, retratadas de uma maneira meio novelesca (sem desmerecê-las e ao sofrimento delas, bem entendido), nossa indignação moral é consumida num sofrimento artisticamente ficcionado enquanto o verdadeiro sofrimento de milhões de outras crianças, muitos mais próximas e muito mais sofridas do que aquelas, permanece por nós ignorado...

Um comentário:

VOGAL disse...

Acho que dá para ponderar. Cada um do seu geito e com sua técnica de fazer. Cinema-novela, cebola mal descascada ou não, temos o grande "Tartarugas podem Voar" de Bahman Ghobadi, é mais do que querer ver cebolas descascadas: ele quer um coração explodido por uma guerra que não parece ser sua, apesar da crescente dúvida pós-filme.