segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O SIGNO NO FILME ETNOGRÁFICO: CARRO DE BOI, de Nicolas Hallet

Ganhador do prêmio Walter da Silveira do XI Festival Nacional de Vídeo Imagem em 5 Minutos


Ao longe, no meio do sertão, um carro de boi passeia lentamente; suas madeiras rangem quase como música. O plano inicial de Carro de Boi é um cristal que traz consigo o filme inteiro: o signo entra, atravessa o quadro lentamente, até sair por completo. Se ele abandona o plano inicial, é para poder retornar durante todo o filme até quando, no último plano, desaparece dando lugar a casa da família.

É assim que no decorrer do filme ele retorna enquanto trabalho - no labor da família -, enquanto brinquedo - nas mãos das crianças-, enquanto educação – na relação adulto/criança. O corte seco marca a relação entre estas facetas: os adultos que dilatam o ferro para fazer a roda do carro e a criança que afina um palito com um facão para fazer o seu carrinho de boi com restos de uma sandália.

Se o carro de boi enquanto signo atravessa todo o filme (que já estava insinuado no plano inicial quando ele atravessa todo o plano) é, também, para criar um cruzamento entre acontecimentos fazendo com que a brincadeira infantil venha a ser trabalho, com que o trabalho venha ser educação, com que a educação venha a ser brincadeira.

E não é preciso que nenhum personagem diga isso. O filme - talhado unicamente por imagens e sons - realiza uma bela descrição etnográfica do carro de boi no sertão nordestino. Carro de Boi consegue realizar um encontro entre a arte e a etnografia. Um filme simples carregado de sensibilidade.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O Efeito Colateral de TROPA DE ELITE


A narrativa de “Tropa de Elite” tem um efeito colateral pois tem duas interpretações possíveis: (1) a partir de um ponto de vista crítico o filme pode ser visto como uma denúncia da estratégia de repressão policial ao tráfico, uma explicitação da complexidade que é a violência urbana, uma crítica a posição da classe média dentro desta conjuntura e por ái vai. Porém, tem uma segunda posição, instaurada por aqueles que assistem ao filme sem um olhar crítico (parcela onde provavelmente está grande parte dos brasileiros).

Quando experenciamos uma história, a nossa tendência é logo se identificar com o herói da narrativa. É ele que vai nos guiar, é a partir de seu ponto de vista que vamos tender a ver… Enfim, é com ele que vamos nos identificar. Em “A Tropa de Elite”, as condições de identificação com o personagem principal chegam a ser redundantes. A primeira delas é a de que o herói do filme é Wagner Moura que está em alta nas novelas da Globo.

A segunda é que o Capitão Nascimento e seu colega são os únicos personagens que tem profundidade psicológica: Nascimento é casado, tem uma mulher que espera um filho e tem crises existenciais. Os demais personagens são superficiais ou, como se gosta de dizer no teatro, são personagens-tipo (os policiais militares, a classe média e o pessoal da favela).

O filme tende que vejamos tudo pela ótica do Bope, de um policial humanizado, que é assim porque as condições da realidade brasileira o tornam tal como ele é. É aí que reside o ponto fraco do filme: quando cruzamos a estratégia narrativa usada pelo diretor e o tema que ele quis tratar.

Abro a revista Época e encontro uma entrevista realizada com dois tenentes do Bope.


“ÉPOCA – Existe algum fator positivo no filme [A Tropa de Elite] para o Bope?

Pinheiro Neto – Parte da população pode se mirar num policial, ver esse policial como um exemplo e acreditar no trabalho dele, isso é uma coisa positiva. Apesar da gente ter verificado que as ações do filme envolvem abuso de autoridade e tortura, de um modo geral a população quer é uma polícia que resolva o problema dela, e isso ela viu no filme. Ontem encontrei um policial em São Paulo, e ele me disse que desde o Vigilante Rodoviário a gente não tinha um policial herói. O Capitão Nascimento virou um herói policial.” (ÉPOCA out.2007, p. 94).

Ubiratan – Já temos até caso de crianças que estão fazendo filmes como policiais no Bope e colocando na internet. Também sabemos que nas brincadeiras de polícia e bandido nas favelas agora as crianças estão querendo ser do Bope. Se querem ser do Bope, é porque acham que o Bope é do bem. Isso é ótimo. Mas, se estão fazendo isso porque acham o Bope mais violento ainda, isso é preocupante.


A narrativa do filme, cujo ponto de vista é completamente centrado no herói policial, gerou um efeito colateral: o de ter criado e reforçado o ponto de vista daqueles que acreditavam que a solução para a violência urbana é mais polícia. Ainda mais se for o Bope do filme: uma polícia honesta, mais que utiliza – de vez em quando - a tortura por uma “boa causa”. A intenção crítica do diretor pode ter saído pela culatra.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

ARTIGOS DE ANTONIONI

A contracampo deste mês (n°88) traz vários artigos escritos por Antonioni que nunca foram publicados no Brasil e outros sobre Alain Resnais. Vale apena conferir.
http://www.contracampo.com.br/

terça-feira, 28 de agosto de 2007

O CHEIRO DO RALO, de Heitor Dhalia

por Aline Frey e Marcelo Matos de Oliveira




Muito cinema para pouca grana. “O Cheiro do Ralo” de Heitor Dhalia recria um mundo onde habita a subjetividade dominante dos nossos tempos: o homem branco, capitalista, heterossexual e habitante da cidade. Estas quatro características definiriam bem o anti-herói do filme: Lourenço, o exímio representante da classe média dos países terceiro-mundistas.

Ninguém tem dúvidas: há muitos Lourenços. Se a corrupção da elite (sonegação de impostos, desvio de verbas públicas, latifundiários que exploram o trabalho escravo...) é de fácil denúncia, o mesmo não é para as pequenas corrupções cotidianas da classe média que são ainda muito mais sutis. Com temores de empobrecimento e delírios irrealizáveis de luxúria, a classe média negocia o quanto pode sua vida e seus valores. O filme deixa um saldo interessante: um asco pelo dinheiro e por todos que fazem dele o fim de seus princípios.

Lourenço põe a sua mesa de negócios entre seus clientes e sua mesquinha coleção de quinquilharias. Cada pessoa - que se senta à sua frente pra vender-lhe um objeto - tenta transformar memória, afeto e beleza em dinheiro. E o anti-herói, com muita presteza, está ali para colocar o objeto na balança e dizer arbitrariamente o quanto vale. As prateleiras de Lourenço, repletas de objeto pessoais, não são feitas de memórias e sim de mercadorias. Se o dinheiro pode tudo, é porque há um juros, um ônus impagável – o risco do irremediável.

Com frases prontas como “a vida é dura”, Lourenço aproveita-se do desespero de seus clientes para comprar seus objetos e, como troco, dá o cheiro do ralo. “Está sentindo este cheiro?” – pergunta Lourenço. “É o ralo” – ele mesmo responde. Como se emanasse de si mesmo, Lourenço vive imerso nesse cheiro.

O filme de Heitor Dhalia é marrom, a mesma cor da merda que decora as paredes do escritório de Lourenço. Se o cheiro é um sentido impossível de ser alcançado no cinema, suas cores parecem exalar para fora da tela o que está dentro do intestino e da alma do personagem.

Imerso entre o cheiro do ralo e os objetos “usurpados” de seus clientes, Lourenço vive sozinho. Os planos fixos de espaços abertos e vazios, usados como transição entre os espaços fechados da lanchonete, da casa e do trabalho, acentuam ainda mais esta solidão do personagem. Em seu apartamento, após terminar com sua namorada, Lourenço sente prazer ao assistir na televisão uma apresentadora de um programa de ginástica. Quando ela aproxima-se da câmera e diz a célebre frase de Nietzsche “eu só acredito num Deus que dança”, podemos perguntar-nos: “e onde dança o Deus de Lourenço?”

Lourenço, o homem comum habitante de uma cidade qualquer. Por isso não interessa se a história acontece no Rio de Janeiro ou em São Paulo, nos anos 70 ou 80. Tanto faz. Os valores do homem médio não variam tanto assim. Tal como o sotaque dos jornalistas das grandes redes de televisão, o sotaque de Lourenço é “nacional”.

Assim, quando Lourenço - interpretado por Selton Melo - é lembrado como sendo parecido com “o artista daquela propaganda”, o homem que compra objetos passa também a ser aquele que já vendeu a si mesmo: seu rosto pertence à televisão, às novelas, às propagandas e aos filmes globais. O artista desse filme tem uma imagem que antecede ao próprio personagem. Destarte, lembrando ao espectador estas “imagens” que estão fora da tela, o diretor consegue reforçar ainda mais o mercantilismo de Lourenço. Uma boa saída já que sabemos que o diretor resistiu a aceitar Selton Melo como ator do filme: ele queria um corpo mais decadente. No entanto, por insistência do ator e provavelmente da produção, acabou aceitando.

Se durante todo o filme, Lourenço consegue dominar os objetos e as pessoas, isso não acontece com o olho de brinquedo. Este é o único objeto que se furta aos seus lances mercantilistas. Ele acaba comprando-o a um preço exorbitante. O olho - a metáfora da captação da imagem - vira, em algumas situações, a própria câmera do filme. Posicionando-o a sua frente, Lourenço apresenta-lhe as pessoas. Seu olho persecutório é o brinquedo que passa a mediar a relação dele com o mundo.

Assim, ele adentra na lanchonete e com o seu olho, passa a roubar a imagem da bunda da moça que lá trabalha. Sua relação com ela apenas reprisa os velhos fetiches masculinos. A moça – objeto de desejo - não precisa de rosto, e nem se quer de nome. Ou melhor, o único rosto das mulheres – para Lourenço – é a bunda. Em uma das cenas, a clássica composição dos diálogos através do plano-contraplano ganha um uso interessante, quando a cara de Lourenço alterna com o contra-plano de uma bunda, tendo ao fundo o seu rosto desfocado. É assim que as mulheres flutuam na superficialidade dele, desfilam anônimas pelos olhos de quem apenas vislumbra possuir um corpo, ou ainda apenas uma parte dele.

O “Cheiro do Ralo” é um filme necessário sobre um homem comum, inteligente, solitário e mesquinho de nosso tempo.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Cão sem Sonhos
















O filme novo de Beto Brant tem uma estética interessante para pensar algumas questões bem atuais. Em tempos de discussão acirrada sobre formatos e suportes audiovisuais, Beto Brant responde fazendo cinema.

A fotografia não podia ser mais realista. O filme começa na cozinha, sem cerimônias. Uma câmera observa o casal. Quase como se fosse uma web cam, o filme imita o vídeo e o roteiro imita um diário de internet. Tal qual um blog filmado, o filme vai passando, sem grandes acontecimentos, mostrando um homem comum, um pouco entediado, um pouco angustiado, desempregado, ajudado pelos pais, sem grandes sonhos ou projetos. Inteligente e sensível ele fala pouco e não tem pretensões.

Ele conhece uma moça que tem sonhos de viagem e vislumbra uma grande carreira de modelo. Eles fazem amor e começam a namorar. Mas tudo é vivido sem grandes encantamentos.

O filme de Brant se cruza em vários pontos com En La Cama de Matias Bize, um filme simples, sobre um casal que se conhece numa festa e bêbados acabam indo a um motel, onde fazem amor e conversam sobre a vida, sabendo da fugacidade desse encontro. Novamente há uma impressão de que apenas uma web cam se move pelo quarto e que assistimos em tempo real o encontro do casal.





Se esses dois filmes problematizam a linguagem cinematográfica é justamente porque levam ao cinema a estética de internet. É como um realismo moderno. Ninguém mais precisa mostrar os equipamentos para afirmar que todo filme é uma ficção, isto já esta dado. Então como chegar hoje a uma impressão de realidade no cinema? Parece ter sido essa a vontade desses dois cineastas.

O que acontece com esses filmes é que abrem um campo de experimentação fundamental. Filmes de baixo orçamento, com poucos equipamentos de luz e maquinaria, poucas locações sendo a maior parte delas internas. Os personagens têm perfis bem parecidos: pessoas inteligentes, sensíveis, um pouco desiludidas com a vida e conduzidas pelos acasos cotidianos.

No filme de Brant a problematização da linguagem fica ainda mais evidente na cena em que o rapaz, vai a uma festa de família em que alguém os filma. As imagens capturadas pela câmera doméstica contrastam muito pouco com toda a fotografia do filme, não só pela luz, mas pelo movimento da câmera, que durante o filme inteiro parece apenas registrar alguns acontecimentos do cotidiano do rapaz.

O que acontece após assistir a esses filmes é pensar que levar a vida comum ao cinema pode ser bem mais interessante se a realidade também for reinventada. Esses filmes apesar de inovarem tecnicamente após algum tempo nos deixam tão entediados quanto seus personagens.





Aline Frey.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Filmes Rurais




Três documentários sobre trabalhadores rurais e a indústria da cana-de-açúcar - um deles produzido com o apoio da CESE.

Bagaço e Vidas Cheias - produzidos pela Comissão Pastoral da Terra e Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Armas não atiram rosas - produzido pela Comissão Pastoral da Terra, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e Movimento dos Trablhadores Rurais Sem Terra, com o apoio da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço).

Armas não atiram rosas retrata a história do brutal assassinato de dois trabalhadores, Pedro Augusto da Silva e Inácio José da Silva. Antes de serem mortos, Pedro e Inácio foram torturados. O caso ficou conhecido como o Massacre de Camarazal e ocorreu há 10 anos, no acampamento do Engenho Camarazal, na Zona da Mata, Norte de Pernambuco, região dominada pela monocultura da cana. Vidas Cheias revela a sabedoria dos camponeses na convivência com o semi-árido e imagens da beleza pouco conhecida do Sertão nordestino. Bagaço mostra a realidade dos trabalhadores na indústria da cana em Pernambuco. O vídeo retrata o dia-a-dia do trabalho no corte da cana, as violações de direitos, a destruição ambiental e a inviabilidade de um modelo de produção baseado no latifúndio e na super exploração do trabalho.

Armas não atiram rosas - Na madrugada de 9 de junho de 1997, pistoleiros atacaram o acampamento do Engenho Camarazal, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, uma região dominada pela monocultura da cana. Eles chegaram atirando contra trabalhadores rurais sem terra acampados na área. Cinco trabalhadores ficaram feridos, inclusive duas crianças. Pedro Augusto da Silva e Inácio José da Silva foram assassinados depois de terem sido brutalmente torturados. O caso ficou conhecido como o Massacre de Camarazal. No mesmo ano, o Engenho Camarazal foi desapropriado para reforma agrária e o novo assentamento passou a se chamar Assentamento Pedro e Inácio. Dez anos se passaram e até hoje ninguém foi punido pelo assassinato dos dois agricultores. O filme "Armas não Atiram Rosas" é uma denúncia contra a impunidade dos crimes cometidos pelo latifúndio e uma mostra da força do povo, que, mesmo ameaçado, mesmo perdendo entes e companheiros queridos, segue lutando por justiça e liberdade. Documentário realizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Vidas Cheias - O documentário Vidas Cheias revela a sabedoria dos camponeses na convivência com o semi-árido e imagens da beleza pouco conhecida do Sertão nordestino. Vídeo realizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e Comissão Pastoral da Terra.
Bagaço - O documentário Bagaço mostra a realidade dos trabalhadores e trabalhadoras na indústria da cana em Pernambuco. O vídeo retrata o dia-a-dia do trabalho no corte da cana, as violações de direitos, a destruição ambiental e a inviabilidade de um modelo de produção baseado no latifúndio e na super exploração do trabalho. Vídeo realizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e Comissão Pastoral da Terra.



Informações:

Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
(11) 3271-1237 / 3275-4789 / www.social.org.br

Comissão Pastoral da Terra - PE
(81) 3231-4445 / www.cptpe.org.br

Movimento dos Trablhadores Rurais Sem Terra
(81) 3222-7569 / www.mst.org.br



terça-feira, 31 de julho de 2007

Morre Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni



"Vai grandes homens... que ao mundo mostraram signos inimagináveis. Com certeza, não seríamos o mesmo depois de vocês".
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Ontem, 31 de julho, morreu Bergman (89 anos). Hoje, o cinema continua em luto: morre Antonioni (94 anos).

sábado, 28 de julho de 2007

quinta-feira, 26 de julho de 2007

A burguesia era amante de todas artes, mas o cinema foi a arte que ela criou.

domingo, 22 de julho de 2007

NOSSA MÚSICA (trecho), Jean-Luc Godard




O homem branco jamais entenderá as palavras antigas ao ouvir os espíritos que vagam livres entre o céu e as árvores. Que Colombo vasculhe os mares para achar a Índia. É um direito dele. Ele pode dar aos nossos espíritos os nomes das especiarias. Ele pode nos chamar de 'índios vermelhos'! Ele pode distorcer todos os ares do vento norte.


Mas fora do mesquinho mundo de seus mapas, ele não acredita que haja homens que nascem iguais como o ar e água. Ele se saciou da carne de nossos vivos e dos nossos mortos! Então porque quer seguir com sua guerra mortal, até o túmulo quando não nos resta mais para dar do que quinquilharias arruinadas, algumas poucas penas pequenas para decorrar nossas pernas? Já não é hora, estranho, de nos encontrarmos frente a frente na mesma era, ambos estrangeiros no mesmo país?


Ambos como estrangeiro no mesmo país encontrando-nos à beira de um abismo. Os ventos recitarão nosso início e nosso fim, embora nossa prisão sangre e nossos dias estejam enterrados nas cinzas da lenda (com o fim em 32':19'').


EDUCAÇÃO NUM MUNDO DE IMAGENS: do visível ao invisível uma revolta sensual

por Fabio Giorgio Azevedo

“tornar sensíveis as forças
insensíveis que povoam o mundo,
e que nos afetam, nos fazem devir”



Há um momento originário de consciência da percepção, quando se começa a estabelecer sintaxes de sentido entre seus elementos formadores, onde é possível exprimir e compreender signos que se pretendem fazer comunicar graças à intersubjetividade (suposta como condição para o compartilhamento de sentido), a despeito das singulares relações forma/conteúdo que cada ator perceptivo possa produzir individualmente. Esse lugar-comum da percepção é o que possibilita a construção de discursos imagéticos que tenham em vista a transmissão de mensagens.
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Ora, num nível que podemos nominar extra-discursivo, a composição estética de uma imagem estabelece com o espectador, ainda no instante pré-predicativo, uma relação de continuidade ou ruptura no que designa a sensação diante da imagem – sensação de estabilidade, produzida pela apropriação “natural” da imagem e pelo reconhecimento de seus elementos estéticos; ou sensação de desassossego, pela inadequação da imagem aos aportes estéticos (formadores) do observador. O que está pressuposto nesse jogo é um bloco de sensações que é constituído num plano de composição - seja do fruidor das imagens, seja daquele que a lança como afecção em direção aos corpos.
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Essa potência de afetar das imagens co-cria o mundo, porque não há extramundo, isto é, a sintaxe do mundo se compõe com as subjetividades, que também o constituem e por ele são atravessadas. O composto imagem-mundo-subjetividade fabrica e veicula formas que se tornam espessas à nossa percepção compreensiva e são incorporadas efetivamente como realidade, produto dos efeitos que se prolongam através das imagens e tomam corpo nos devires humanos e inumanos do mundo.
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Desse modo, podemos já intuir a instituição estética – a normatização da “boa forma” - que passa a ser responsável pela forma-de-ver-o-mundo dos indivíduos, do que se pode dizer que seja o mundo a partir do que se vê, da relação entre o visível e o dizível, que é habitualmente tomada como uma relação de reciprocidade, de correspondência, por graus de semelhança e aproximações de vizinhança. Nesse sentido, uma forma crítica que ganha força atualmente é o exercício de desmistificação das imagens como atividade libertária, com a intenção de desaprisionar o espectador das ilusões de sua ideologia silenciosa que amolda o que parece ser moldado em-si e por-si, e que parece ter uma essência própria independente do trabalho da percepção. A atividade perceptiva, do ponto de vista de quem propõe a existência de um por detrás das imagens, é uma atividade de maculação da coisa, de impregnação da coisa pelos pré-conceitos da subjetividade que a percebe – desde o início já de modo distorcido, por assim dizer. Nessa perspectiva, que se traduz numa fenomenologia, o trabalho do educador seria “limpar” as imagens, desvencilhar o espectador do brilho ofuscante de seu próprio contorno para que se possa ver, em profundidade, o brilho próprio da coisa por ela mesma. Ainda que se abandone a idéia de captar o ser-da-coisa, já que se está mergulhado entre elas e sem a possibilidade de um “afastamento” – sendo aconselhável, metodologicamente, a descrição da implicação, do envolvimento do espectador - guarda-se, ainda assim, quando a crítica significa um desvelamento da ilusão - a saída da caverna, o descobrimento da natureza -, uma nostalgia como a que se vislumbra na voz de Caeiro, em O Guardador de Rebanhos: “as coisas são o único sentido oculto das coisas”.
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De outro modo há sempre um invisível possível constituinte de todo visível, e que é possível porquanto não existe em potência, mas é produzido (jogar mundos no mundo) em acto. E a produção, a expressão desse invisível, diz respeito a um processo de deseducação dos sentidos, de uma desterritorialização da semiótica perceptiva, de uma plissagem na articulação do real percebido e da experiência vivida, uma fissura nos clichês da significação. Isso que chamamos de deseducação dos sentidos, inspirado na opinião de Bacon quanto ao objetivo da arte, significa limar os ídolos (clichês), isto é, abrir nosso campo perceptual ao que está fora da tela, o que mantém com a tela uma relação de mútua determinação, mas que ali não se explicita, pois diz respeito ao bloco de sensações que se forma na fusão da imagem com o espectador, criando entre os dois uma zona de indiscernibilidade.
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É justamente nessa zona obscura onde não está mais em jogo nem a imagem nem tampouco o indivíduo (ainda que um e outro sejam parte do plano de composição, formando um bloco), que os devires de todo tipo, as sensações mais contundentes e inimagináveis podem surgir como uma espécie de iluminação, produzindo outros arranjos na organização da percepção e delineando outras subjetividades, e ainda outros devires, compondo com as imagens um modo de expressão que cria - o invisível.
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A “revolta sensual” acontecerá quando, seguindo as linhas de uma atividade de despersonalização do indivíduo pela desconstrução ativa do plano estético onde se erige seu modo de ver as coisas, pode-se produzir uma perspectivação que libera o mundo, ou melhor, atinge a carne do mundo na construção de um plano infinito de variedades, e que não se reduz ao real observado e compartilhado. Pois com o desvio da percepção habituada há também o desvio da existência costumeira, do habitar-se a si mesmo como uma repetição identitária. E, nesse sentido, a criação de um território estético, experimentativo e próprio - tornando-se o artista de si, escultor incessante de modos de existir -, é condição para criação do mundo, para expressão do invisível, para invenção da existência como obra aberta, inacabada não porque incompleta, e sim, por estar transbordante e irredutível ao percebido da experiência vivida.
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Referências bibliográficas

Deleuze, G & Guattari, F. Percepto, afecto e conceito in O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
Foucault, M. A prosa do mundo in As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Perrone-Moisés, L. O parti pris de Ponge in Inútil poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

A EXPLICITAÇÃO DO MÉTODO NO AUDIOVISUAL

(trecho de uma conversa realizada por e-mail entre Marcelo Matos e Aline Frey, 22/04/2006)

Retornando aos neo-realistas... Os neo-realistas conseguiram produzir, talvez até mesmo sem querer, todas essas imagens-tempo, das quais falamos com Deleuze no outro e-mail. No entanto, a uma outra imagem que vale a pena ser considerada que seria uma espécie de imagem igual aquela que presenciamos no meio de um sonho e que faz você se relembrar: “ Isso é um sonho”. Uma imagem que lhe relembra um outro estado de consciência, a vigília no caso, mas sem lhe retirar do sonho no qual você estava imerso.

Não sei como chamaríamos essa espécie de imagem. Mas enfim... Os neo-realistas ainda se instauravam num cinema-representação. Eles acreditavam que fazendo um cinema com os atores do próprio contexto em que iriam filmar, estariam criando uma nova-realidade, talvez mais convincente do que aquela filmada com atores profissionais. Aqui temos a idéia de que o filme é uma obra fechada e que cabe ao diretor não deixar nada vazar para que o espectador tenha a nítida sensação de que tudo aquilo é real, de que aquilo é a Verdade. È neste sentido de que falamos de um cinema-representação.

Com Glauber Rocha, por exemplo, o filme cria uma abertura aterrorizadora que chega ao seu ápice em A Idade da Terra, um filme completamente aberto que escancara os seus artifícios, que mostra a plasticidade objetal dos atores (“aquela cena de Glauber segurando o rosto de um ator e balançando-o como se fosse um boneco”), que mostra como o filme foi feito. "Eu Me Lembro" de Navarro deixaria essa sensação no final, quando depois de uma série de lembranças psicodélicas (imagem-tempo) a grua aparece na festa e o diretor rapidamente escorrega pelo canto da tela. É como se depois de uma longa viagem... “tudo o que se passou não passou de um filme”.

Se o mundo é um conjunto de imagem, inclusive o nosso próprio corpo, como disse H. Bergson, a nossa memória é uma ilha de edição.

Não tenho ainda um conhecimento histórico do cinema para precisar quando o cinema começou a mostrar os seus artifícios (isso daria até uma pesquisa interessante: como o cinema se mostrou em quanto cinema em ato?). Mas o que interessa é precisar exatamente esse deslocamento da 'imagem como representação de um território' para a 'imagem como modo expressivo do território'. A pergunta não seria mais “que imagem escolheríamos para nos representar” e sim “com qual imagem queremos expressar o que temos a dizer”. Um cinema máquina-de-guerra e não mais um cinema que representa o real.

Assim, se falamos em vídeo-processo estamos nos referindo a um vídeo-método; um filme que não deixa o espectador sair dele como se o filme fosse uma verdade. Um filme que constantemente relembraria, através de seu próprio método de realização, ao espectador: “não se iluda. Isso é um filme”. Talvez seja nesse sentido que Dubois desloca a “impressão da realidade” do cinema e a substitui por uma vertigem do vídeo. Aquela vertigem de estar num sonho fugindo de algo e de repente nos precipitamos num abismo. Ninguém mais irá encobrir o abismo que está logo abaixo de seus pés. Ninguém mais pensará por ninguém. O abismo será, a partir de agora, a condição da experiência do audiovisual.
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PS: Olha só como este texto do início de 2006 se aplica a Santiago de João Moreira Salles que assistimos semana passada.

TÃO LONGE, TÃO PERTO


No alto de uma estátua, dois anjos conversam em pensamento:


- Por que elas [os mortais] nos afastam cada vez mais? - pergunta um anjo

- Porque temos um inimigo poderoso - responde Raphaela

- As pessoas acreditam mais no mundo do que em nós.

- E para acreditar ainda mais criaram imagens para tudo. Elas esperam que as imagens afastem seus medos, realizem seus sonhos, ofereçam-lhes prazer, satisfaçam seus desejos - continua Raphaela.

- Os homens não dominaram a Terra, foram dominados.


(WENDERS, Win. Tão Longe, Tão Perto, 42':20'')

GLAUBERIANAS



Glauber Rocha é que nem Augusto dos Anjos, só se entende se ler gritando.

domingo, 8 de julho de 2007

AS RUAS DE CASABLANCA (ALI ZAOUA), de Nabil Ayouch: um neo-realismo fantástico

por Marcelo Matos de Oliveira



Olha só... Eis que assistimos um filme que se coloca na máxima tensão que viemos nos colocando na série NIILISMO E SINCRETISMO [ver postagens anteriores].

Quando vi a capa do filme, resiti em assisti-lo. Pensei que iria encontrar mais um filme sobre meninos de rua, que cheiram cola, que assaltam para comprar comida e por aí vai. Não foi nada disso. Ainda bem que assistimos. Vimos um belo filme, não foi?

Para mim, que trabalhei como educador com esta galerinha de rua, o filme conseguiu uma generalidade da narrativa de modo que reconheci as histórias dos meninos de lá com as daqui de Salvador. Talvez, não seja insensato dizer que aquela narrativa poderia acontecer em qualquer grande cidade de qualquer país do terceiro mundo. Gostaria de ter assitido este filme com os meus ex-alunos.

O filme marroquino "As Ruas de Casablanca" tenciona a dura vida dos meninos em situação de rua da cidade marroquina e a utopia (afetos alegres grupalmente construídos) que os mantém vivos e unidos na busca da Ilha com Dois Sóis.

A infância desastistida (uma das consequências do processo de modernização-colonização dos países terceiro-mundistas ) e a realidade mágica (que no filme se extrema com o uso de desenhos animados e computação gráfica para salientar a imaginação dos personagens) a toda hora são jogadas uma na outra. Ora é a dura vida que se joga na imaginação, ora é a imaginação que resolve fazer-se realidade.

Este vai e vem, já está marcado logo no começo do filme. Durante os créditos iniciais, temos - como textura de fundo - uma pintura que mais a frente vamos descobrir que é o sonho de Ali Zaoua. Sobre ela, a voz de um menino narra a dura realidade de sua vida. Na cena seguinte, descobrimos que esta voz é de um menino de rua (Ali Zaoua) que aparece numa tela reduzida dando entrevista a uma repórter de TV. A redução da tela tem um efeito de minimizar a "vida real" do personagem (principalmente aquela vinculada pelos meio de comunicação) em relação a potência imaginativa que o menino tem. É como se já no começo do filme o diretor informasse: 'está não é uma estória-clichê sobre meninos que vivem na rua, sobre o que eles falam para as televisões, para o repórteres ou até mesmo para as madames as quais eles pedem dinheiro'. Durante o filme, descobrimos que quase tudo aquilo que ele falou nesta entrevista era mentira, menos o seu sonho de tornar-se um marinheiro. O sonho é a única verdade que pode ser enunciada ao mundo. A verdade da arte.

Mas como o filme consegue sair do clichê?

A estória logo vai precisar de uma morte. É assim que nas primeiras sequências, o personagem principal (que no título original é o nome do filme: "Ali Zaoua") morre. Exatamente quando contava para o seu melhor amigo que iria partir para Ilha dos Dois Sóis, exatamente quando a utopia estava ganhando força, ela é interrompida por uma pedrada em sua cabeça, por uma gangue que chega gritando uma vontade de nada: "a vida é uma merda".

A morte de Ali vai gerar um virtual que não se cansará de atualizar-se durante todo o filme. Ali Zaoua morre, mas ele continuará presente durante toda a película: no seu corpo que fica escondido dentro do buraco, na búsula que ele tinha acabado de receber de um marinheiro, no seu amigo que deseja tomar seu lugar como filho, no dinheiro que pedem na sinaleira, na crença-utópica dos meninos na existência da Ilha dos Dois Sóis e na pergunta que sempre retornar "se os dois sóis se põem ao mesmo tempo". A morte de Ali promove uma aventura que tira o filme do clichê, pois - depois dela - todos os atos dos personagens serão remetidos a ele e, por isso, ganharão um outro sentido do que aqueles comumente atribuídos pela racionalidade-mediana.

Os desejo de Ali estava num mundo que não existia - pelo menos não existia ainda: numa ilha que tinha dois sóis e que para chegar lá, ele teria que se tornar um marinheiro. Ou seja, um mundo impossível (sabemos racionalmente que não existe uma ilha com dois sóis no planeta Terra e a pegada neo-realista que o filme tem sustenta está premissa no filme) poderia levar áquela criança a um outro mundo possível: a saída deles das ruas já que o mundo das embarcações tinha se aberto para ele através de um mundo racionalmente inexistente. Um neo-realismo fantástico.

É o toque fantástico que abre a possiblidade, que em "Ladrões de Bicicleta" de De Sica e claro no contexto histórico do pós-guerra em que o filme aconteceu, não havia. "Um pouco de possível senão nos sufocamos". Em meio a uma infância desasistida povoada de escombros e violência, um "território suspenso" é criado, um território que possibilita a fuga, mas não a fuga do covarde que foge a luta e que se esquiva dela. Fugir, mas no meio da fuga inventar uma arma.

Os meninos mostram que o Fim das Utopias é para aqueles que têm preguiça de re-criar o mundo.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

NIILISMO E SINCRETISMO (III): POR UM CINEMA MINORITÁRIO

por Marcelo Matos de Oliveira
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Primeiro, no que concerne ao que me referi como alegria e como tristeza, duas palavrinhas faladas cotidianamente, mas que na conversa abaixo [Niilismo e Sincretismo postado em 27 de junho de 2007] me referi a elas num sentido espinosista. Por isso fiz questão de colocar entre parênteses: “tristeza (a decomposição dos corpos e das idéias) e a alegria (a composição dos corpos e das idéias)”.

A alegria enquanto composição dos corpos e/ou das idéias significa dizer que quando sentimos alegria é porque uma determinada idéia ou um determinado corpo entrou em composição com o meu corpo e/ou idéia aumentando, com isso, a nossa potência. A nossa consciência age recolhendo deste encontro o efeito de alegria. Depois do encontro, ambos saem mais potentes do que eram. Por exemplo, quando converso alguém e esta pessoa compõe com o que eu estou pensando e vice-versa, aumentamos com isso a nossa potência.

Porém, se ao invés de uma boa conversa fosse uma briga, aí a relação entre os corpos não seria mas de composição e sim de decomposição, de tristeza.

Se Espinosa é o príncipe dos filósofos, é por que a sua Ética denuncia os afetos tristes. “Espinosa” – diz Deleuze – “não cessa de denunciar três espécies de personagens: o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder e o homem que entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral” (DELEUZE, p. 31). Respectivamente, o escravo, o tirano e os guardiões das verdades (Deleuze fala do padre).

Seguindo o rastro de Espinosa podemos dizer que a alegria dos negros da Bahia de outrora é um efeito de um movimento de re-existência (existir de uma outra forma). Formas de estar-juntos. E não apenas de um olhar que se dirige àquela época querendo recolher apenas alegria. Já não somos tão nostálgicos assim, né papá?

Numa Bahia em que Gregório de Mattos vociferava "Triste Bahia! Ó quão dessemelhante. Estás e estou do nosso antigo estado!", as festas, o lundu, a umbigada eram momentos, com certeza muito poucos, em que os negros eram livres, que deixavam de serem escravos e tornavam-se reis e rainhas. Poderiam dizer que estamos falando de um território simbólico, já que o mundo "real" era duro e cheio de pelourinhos. E isto ainda perdura até hoje, já que sofremos seqüelas do processo de colonização escravocrata.

Mas é o efeito da alegria, que quero pontuar - que não é uma alegria falsa, a não ser que tomemos "alegria falsa" como "alegria passageira". Porém mesmo passageira é a alegria que garante o bom encontro entre os corpos e as idéias (Espinosa falaria o contrário: é o bom encontro que gera a alegria). E é exatamente pela capacidade de termos bons encontros que podemos estar-juntos e só estando juntos para poder reinventar o mundo. (Claro que eu estou considerando aqui de uma práxis deste estar-junto).

Se o “desencantamento do mundo” foi a falta de sentido que as religiões operaram sobre a magia, instituindo uma outra vida” nos céus em contraposição aos deuses terrenos, como rastreou Max Weber; se o “desencantamento do mundo” foi a falta de sentido que a ciência operou na religião através da busca de nexos causais para explicar tudo, será que podemos dizer que o nosso mundo nordestino é completamente desencantado?

O que é o Ilê passando? E aquela alvejante manta que é os Filhos de Gandhi? Quem é Riachão que anda pelo Garcia com suas roupas coloridas, sua toalhinha alva no pescoço a lançar gritos ao ar? O que é o Nego Fugido de Acupe com a boca rubra de sangue a escorrer? E os Orixás que ainda não se cansaram de encantar os terreiros? Ou o toré dos Trucás, estes índios guerreiros de nosso sertão, que batem os pés ao chão para os encantados descerem? Em suma: se nunca fomos modernos, como podemos agora ser niilistas?

E aí a questão resvalada para área de nosso interesse: como pensar um cinema que aumente a nossa potência como latino-americanos, nordestinos, índios, negros, mulheres, sertanejos? Como um cinema pode forjar uma identidade que aumente a potência daqueles que a tomam? Como pensar um cinema minoritário que faça o cinema das elites gaguejar numa variação contínua, que faça o Cinema variar numa multiplicidades de cinemas. A(r)tivismo. "O cinema tem que ser político" – bem disse Diego. Se há um Ecossistema Fílmico deverá haver uma Ecopolítica dos Signos Audiovisuais. Está fundada uma nova área de estudo :-).

NIILISMO E SINCRETISMO (II): O NEO-REALISMO LATINO-AMERICANO.

por Diego Haase


Se só a alegria pode responder pela tristeza, apenas teremos no nosso roteiro simples atores passivos de um ecossistema que não pode ser transformado por eles mesmos, no qual apenas interferem com crenças e sensações traídas para contrapor com a sua tristeza momentos e encontros que terminam se tornando uma solidão. Como vemos o desencanto neo-realista sim! Se “aplica” ao cinema Brasileiro e Nordestino como por exemplo no “o céu de Suely” de Karim Ainouz, onde a personagem principal, Hermila , sofre o abandono e o desamparo e decide rifar seu próprio corpo , ao igual que no média de De Sica “A Rifa” do final dos anos 60, onde Sophia Loren se oferece como prêmio de uma loteria em Nápoles. Filmes que concentram um olhar neo-realista dentro da realidade que abordam pessoas simples, porém universais, tratando dos problemas humanos que se manifestam com o “sincretismo” do acontecer em Nápoles nos anos 60 ou no sertão do Ceará no ano 2006, caracterizando o ressurgimento de sistemas narrativos do neo-realismo no terceiro mundo, seja no Brasil, na África ou na Ásia. .

O Brasil, e o Nordeste, em particular a Bahia, tem sim, uma diferença com outros paises do “terceiro mundo”, algo que há séculos vira um espanto em torno de uma “falsa alegria”, como nenhum outro pais na América Latina, as ligações coloniais de subordinação e paternalismo estão fortemente atualizadas, o barroco da história, ou bem, essa modernidade que não chega romantizando o passado, faz que o império não seja “o inimigo”, mas sim o percussor de uma falsa identidade que determina essa diversidade de fronteiras virtuais e falsos signos de pertença, para os quais se há misturado a vida como função (olhares meramente funcionalistas no cinema) e a vida da tradição atrasada na modernidade, perpetuando assim, uma continuidade bélica de dominação colonial.

Teríamos que reconhecer que essa cultura de “re-existência” é - de fato - uma RESISTÊNCIA! que a diferencia de “coexistir”, como parte diversificada do mangue-, procura lutar a séculos pelos seus direitos. Já que ainda hoje em “nossos dias” o Estado continua oprimindo as maiorias excluídas, negros e negras, índios e índias, sertanejos e sertanejas, herdeiros da luta contra a escravidão, e que tem que continuar RESISTINDO! à pobreza.

Quem olha para a Bahia barroca reconhecendo nela uma eterna alegria de superação do sofrimento em pro de um olhar pra alegria, embora com a ajuda dos Deuses africanos, enfrentando a evangelização de massas afro-descendentes, sabemos que não enxerga uma superação enquanto à escravidão, embora esta se chame pobreza e abranja um 80% dos baianos em sua maioria negros. Isso não é diversidade, senão a realidade de uma população que continua sofrendo um sistema escravocrata agora manifestado pela exclusão social de viver na pobreza, enquanto uma minúscula minoria da aristocracia dominante de filhos/as do império, se apodera dos símbolos e das artes produzidas por uma industria cultural milionária no Brasil, uma minoria de “acomodados” dispõe dos usufrutos da maioria dos aparelhos culturais do Estado e é, também, a distribuidora e a pioneira das novas tecnologias com as quais decide e vislumbra com um carnaval de mangues e siris diversificados, o poder de marcar o ritmo da chegada da modernidade e suas tecnologias. Isso é o que degrada o mangue, tão diversificado, o que trai à tradição, esquecendo dos índios, do sertão e da África...

Onde diz respeito ao desencanto, dos filmes e suas realidades latino– americanas não vejo ali uma tristeza, senão uma massa em estado de unidade que se reconhece e se identifica pela sua situação ante esse desamparo, reconhecendo uma identidade coletiva, frente a qual nem a religião nem o Estado garantem a tradição: uma guerra no filme de Gobadi “tartarugas podem voar”, um estado de decadência no pântano de Lucrecia Martel. Estes, entre outros tantos, são ecossistemas fílmicos onde o encontro dos personagens e sua revolta contra os falsos estandartes da realidade, recaem com a sua fúria num olhar de mundo que rebela onde as partículas da tradição foram traídas e ultrajadas, e proclama um grito no silêncio das sensações de quem assiste esses filmes.


Making off do Filme Tartarugas Podem Voar
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O cinema tem que ser político. A política do filme é aquela que se manifesta em prol de denunciar o niilismo, a falsidade encantada dos signos já há tempo sem sentido; aquela que re-significa as verdades absolutas de dominação ideológica, dando lugar a novas vozes e sentidos que determinem um olhar comprometido sobre as sensações que atingem o ser social e a sua atualidade, seja esta no Irã ou na Argentina, universalizando os signos em prol de uma linguagem cinematográfica que comunique através das fronteiras pré-estabelecidas, e leve em si mesma uma verdade transformadora, que além de encantar o olhar, revolte a alma e esquente o sangue da nossa transcendência, através de personagens revolucionários que abandonados dentro de um pântano, ou uma guerra, com a força da sua alegria ou da sua tristeza, possam projetar a liberdade!

quarta-feira, 27 de junho de 2007

NIILISMO E SINCRETISMO

por Diego Haase e Marcelo Matos (conversa por e-mail em 27 de junho de 2007) . Plano Inclinado.

Diego Haase: E demonstrando assim que ditos arquétipos são sementes do passado [ver as duas postagem anteriores a esta], os neo-realistas latino-americanos, orientais e iranianos, entre outros, compõem uma duração em termos de um sentido rítmico da realidade ante a qual os personagens mergulham em um mundo constituído além das suas próprias possibilidades. Um mundo tornado um pântano, uma guerra, um deserto, um estado de duração fílmico no entre-ato da memória, largados ao azar e frente ao desamparo. A história tem mudado para sempre, agora ela não pertence mais ao passado, como antigamente se contava histórias, senão a forma de decompor o presente que é matéria viva da realidade, com a percepção pura do espírito em busca, traído pela tradição e em conflito com a modernidade. Roteiros são sem dúvida a percepção do estado contemporâneo da realidade devastada pelos olhos da humanidade!

Marcelo Matos: Aqui tem uma deriva teórica a percorrer que estamos intuindo a tempos: dizem que vivemos em uma situação da qual é impossível sair, mas também é impossível permanecer. Uma espécie de pântano onde a tradição foi traída, como aponta Diego. Quem mais sacou isso foi F. Nietzsche (que cunhou o conceito de "niilismo") e Max Weber (que cunhou o conceito de "desencantamento do mundo"). Nietzsche e Weber só poderiam ser alemães.

O que eu estou intuindo é que esta situação que Nietzsche e Weber descrevem mui bem não se aplica completamente às narrativas terceiro-mundista, ou talvez especialmente à brasileira, e mais especificamente ainda à nordestina. O nosso pântano é um mangue: no meio da lama a vida se manifesta linda, bela e diversificada. Um entre-lugar entre as águas doces e salgadas que gera um ambiente sui generis. São os olhinhos dos carangueijos que pontam para fora da lama. Os dias da Manguetown.

A formação dos signos culturais baianos são barrocos e sincréticos; nós nascemos na modernidade sem sermos modernos, a modernidade só chega por aqui inacabada, pela metade. É louco entrar na vida da Bahia dos séculos XV ao XIX, é uma escravocrata tristeza que ainda assim gerava uma alegre cultura re-existência (veja aí a capoeira, o samba de roda, a culinária...) . E isto está aqui em nosso presente, está no dia a dia deste Centro que andamos todos os dias.

Se a tristeza (a decomposição dos corpos e das idéias) nos ruma para um desamparo, somente a alegria (a composição dos corpos e das idéias) pode nos amparar. É somente a alegria que pode recompor a realidade devastada pelos tristes olhos da humanidade. Da lama ao caos, do caos a lama...

O ANJO DALTÔNICO: a mémoria pura e o escape às estruturas narrativas clássicas

por Marcelo Matos


o anjo daltônico

Fiquei a pensar se haveriam filmes que fogem das duas estruturas narrativas clássicas que delinei anteriormente. Na minha cabeça me vem o curta-metragem baiano "O Anjo Daltônico" de Fábio Rocha. Exatamente por não trabalhar com estes dois arquétipos clássicos da narrativa que este curta-metragem correu o risco de cair no hermetismo e na obscuridade. Risco que 'valeu a câmera' ter corrido. Há uma narrativa, sim, em "O Anjo Daltônico": a narrativa da memória, do virtual (no sentido bergsoniano), do passado, com suas zonas de lembranças e buracos de esquecimentos, com seus movimentos e paralisias. A história que o filme conta é a história da memória, a história da história. Por isto temos a impressão de uma não-linearidade no filme. É como se "Grandes Sertões: veredas" de Guimarães Rosa fosse prensado, ou melhor acelerado, em menos de duas dezenas de minutos. Chegando ao ponto do atual e do virtual, do presente e do passado, da lembrança e da percepção, compartilharem o mesmo plano fotográfico. Não é este o fim do filme? É esta aceleração - o Tempo como inimigo do cineasta iniciante - que dá às imagens e à narrativa um fluxo que quase beira a loucura. "O Anjo Daltônico" é uma obra eminentemente barroca, é uma pérola irregular tal qual o labirinto que é a própria memória.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Dois Arquétipos da Narrativa Cinematográfica

por Marcelo Matos
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A grosso modo dá para identificar dois modos estruturantes, arquetípicos, da narrativa cinematográfica. O primeiro é a aventura do herói, e temos a Odisséia de Homero como um bom exemplo. Neste tipo de arquétipo, o personagem principal é tomado por um motivo que o faz entrar numa aventura, onde encontra outros personagens que irá compor a história. Assim temos, "A Aventura" de M. Antonioni, "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber, "Cinemas, Aspirinas e Urubus" de Marcelo Gomes e por ai vai.
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O segundo arquétipo da narrativa cinematográfica é aquele onde prepondera um acontecimento ao qual o personagem principal deve se adaptar, ou não. Neste tipo de história, todo o "feeling" do filme gira em torno de um acontecimento. Dentre estes temos: "Teorema" de P. P. Pasolini, a chegada do jovem na família faz todos os membros desta passar uma revisão de suas sexualidades; "O Ano em que Meus Pais Sairam de Férias" de Cao Hamburguer onde um menino é deixado só dentro de um edifício devendo todos, e até ele mesmo, lidar com esta situação...
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Algumas narrativas misturam estes dois arquétipos. "Oshama" - daquele diretor afegão - parece ser um meio termo no qual uma menina tem que virar menino para poder dar o que comer a sua família. Este acontecimento se transforma numa situação no decorrer de toda a história que os personagens vão ter que resolver. Ao mesmo tempo, é este acontecimento que faz a menina traçar uma linha de fuga onde ela se envolve com as mais terríveis crueldades do Talibã. E aqui, "Os Caçadores de Saci" de Sofia Federico no qual a chegada dos sacis requer de uma família interiorana traçar uma aventura para expulsá-los da casa, mas que na procura de sua solução - principalmente com a chegada do caçador, acabam por engendrar uma aventura dentro da própria fazenda. "A Cidade Cargueiro" também é um meio termo entre estas duas estruturas: os signos da cidade (modernidade) devem ser incorporados pela imaginação dos meninos (tradição). Mas esta incorporação só se dá nas peripécias, como Aline gosta de dizer, dos meninos pela ilha. Pelo menos no roteiro, as duas estruturas (a assimilação do acontecimento-cidade e a aventura-de-chegar-até-ela) são indiscerníveis.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

MANIFESTO DE UM CINEMA NORDESTINO


Que o cinema nordestino seja nordestino, que o cinema nordestino seja cinema.
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NASCIDOS EM BORDÉIS, de Ross Kauffman e Zana Briski, 2004


por Wilson Alves Senne
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Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo a uma arranhadela em meu dedo” .
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Esta frase do Tratado de David Hume introduz o tema das paixões como modo primitivo de existência, como existência sem qualidades representativas, como um modo de afecção diferente do modo como nos afetamos socialmente. Ela recoloca a grande diferença que há entre aquilo que nos concerne pessoalmente e o que diz respeito aos outros. Adam Smith já havia comentado a frase de Hume dizendo:
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“Se ele estivesse para perder seu dedo mindinho amanhã, não dormiria esta noite. Contudo, uma vez que não os viu, vai roncar profundamente a noite toda, a despeito da ruína de centenas de milhões de seus irmãos, e a destruição dessa multidão imensa interessa menos a ele do que seu insignificante drama pessoal.” (A. Smith, Teoria do Sentimento Moral)
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Esta frase e comentário vem ao propósito do filme que assistimos (Nascidos em Bordéis – de Zana Briski e Ross Kauffman , 2004) para ilustrar a que ponto nossa preocupação e nossas ações morais são engendradas não pela lógica das relações entre seres humanos, mas pela proximidade, pela visão e percepção da dor dos outros como se tal dor fosse nossa, ou de alguém próximo.
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O que o filme faz, provocando a compaixão em pessoas do mundo todo ( ver por exemplo os comentários do filme no site http://www.interfilmes.com/), é construir narrativamente essa proximidade, fazendo uso de uma porção de técnicas, desenvolvidas pelo cinema (e desde antes, pelas narrativas literárias), para aumentar o sentimento dessa proximidade. Usar a narrativa em off em primeira pessoa, por exemplo, ou explorar em close as faces e os olhos (lindos olhos negros, aliás...) das crianças contra a luz, ou colher a narrativa com toda expressividade que um depoimento não ensaiado pode envolver, ou contrastar imagens de uma realidade deprimente com os dizeres de esperança, projetos e sonhos das crianças, ou empregar recursos sonoros (trilhas musicais pungentes) para intensificar efeitos emocionais, etc.
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Através desses artifícios miméticos, os diretores conseguem uma proeza há tempos explorada pelos romancistas (e desde muito antes, pelos sofistas): estabelecer conosco uma relação de proximidade com pessoas que não conhecíamos, ligando-as a nós, envolvendo-as emocionalmente conosco, despertando em nós o sentimento humanitário por elas.
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Thomas Laqueur (in Corpos, Detalhes e a Narrativa Humanitária in Lynn Hunt, A Nova História Cultural, Martins Fontes, 2001) situou o começo do século XVIII europeu como um momento histórico em que, ao mesmo tempo que o surgimento do romance, prodigalizaram outros discursos humanitários, formando todo um corpo de narrativas que passou a abordar, de forma extremamente minuciosa, o sofrimento e a morte de pessoas comuns, objetivando-se com isso ligá-las a nós, construir um público de massa humanitariamente sensibilizado. As “Humanidades” e depois, as “Ciências Humanas”, muito provavelmente não existiriam sem essa construção antecipadora (do Homem e do humanismo) feita por narradores muito habilidosos (a exemplo de Victor Hugo com seu Os miseráveis, ou Castro Alves e Navio Negreiro, etc...) .
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No que tem positivo, a habilidade em construir narrativas tocantes pode “despertar” pessoas para uma causa, para o sentimento de uma urgência que está na base de muitas “conversões” a grandes bandeiras de luta sociais (quantas ONGs não começaram a partir de um relato! – a exemplo do filme em questão, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro e provocou o surgimento da ONG Kids-with-cameras – cf. www.kids-with-cameras.org/home )
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Por outro lado, no que tem de negativo (tal como já acusavam os “dramaturgos de protesto” – Ibsen, Artaud, Pirandello, etc - contra o que chamavam “teatro da cebola”, o teatro feito para arrancar lágrimas da platéia), Bertold Brecht já acusava as narrativas envolventes como exploração do sentimentalismo fácil com fins de iludir os sentidos e retardar as consciências para a verdadeira transformação social. Enquanto choramos por meia dúzia de crianças pobres indianas, projetadas numa tela, retratadas de uma maneira meio novelesca (sem desmerecê-las e ao sofrimento delas, bem entendido), nossa indignação moral é consumida num sofrimento artisticamente ficcionado enquanto o verdadeiro sofrimento de milhões de outras crianças, muitos mais próximas e muito mais sofridas do que aquelas, permanece por nós ignorado...

terça-feira, 12 de junho de 2007

UM CINEMA MESSIÂNICO

O historiador Antônio Risério identificou uma linhagem messiânica na vida política, religiosa e cultural da Bahia que atravessa o Padre Antônio Vieira, Gregório de Matos, passa por Antônio Conselheiro e desemboca no cinema de Glauber Rocha.
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Ver: RISÉRIO, A. Uma História da Cidade da Bahia, p. 187-188

segunda-feira, 11 de junho de 2007

AS DAMAS DO BOSQUE DE BOULOGNE, de R. Bresson

A vingança que pousa sobre os fotogramas de um filme.
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domingo, 10 de junho de 2007

MEMÓRIA E IMAGEM-TEMPO

por Marcelo Matos
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[este trecho é parte da discussão de elaboração do roteiro “Bom Zezé: a antena do Sertão” de Diego Haase, realizada em março de 2006]
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Da imagem-movimento a imagem-tempo. Não seria essa a grande passagem que a descendência neo-realista italiana operou na história do cinema? Toda a confusão da heroína em “O Grito”, de M. Antonioni, e a sua única reação é gritar quando aquele que ela ama tem um desmaio súbito e despenca do alto da torre. Ou o pescador-revolucionário, em “A Terra Treme: o episódio da Maré” de Luchino Visconti. Depois de chegar na eminência de uma revolução ´Ntoni vê todo o seu barco (a sua única possibilidade de sair da exploração dos atravessadores de peixes) ser destruído pela tempestade; ou ainda em “O Eclipse”, também de Antonioni, quando depois de diversas desilusões amorosas a personagem é esvaída num espaço vazio que é tragado pelo branco estourado de uma luz. Até mesmo em “Os Ladrões de Bicicleta”, de De Sica, onde uma mísera bicicleta é a impossibilidade do desempregado arranjar um emprego.
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No entanto, mais do que as temáticas sociais, mais do que o fato de realizarem filmes com atores do povo, o neo-realismo operou uma mudança de regime da imagem no cinema. A passagem de um tipo de narrativa a outro, mas sobretudo duas formas distintas de pensar o tempo dentro do cinema: da imagem-movimento do cinema clássico à imagem-tempo do cinema moderno (tese deleusiana). Se no cinema clássico teríamos atores que sabiam muito bem reagir à situação isso não acontece mais. No neo-realismo, os personagens são tomados em acontecimentos que os ultrapassam: o desmaio em “O Grito”, a tempestade em “A Terra Treme”, a miséria em “Os Ladrões de Bicicleta”. Neste último, quando ele está tão certo de como deve agir, trocar os seus lençóis por uma bicicleta, ou até mesmo quando a sua bicicleta é roubada e ele tenta roubar outra, é a impossibilidade do acontecimento que impera.É que uma espécie de paralisia motora, como em “O Grito”, obriga os personagens a ver e ouvir o que está além de qualquer resposta ou ação possível. E é aí que o espectador e o personagem se vêem defrontados apenas com imagem ópticas e sonoras puras, imagens-tempo.
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Atualmente, “Tartarugas podem Voar”, de Bahman Ghobadi é repleto dessas imagens: o menino que grita “cadê meu pai?” dentro das cápsulas de mísseis, ou a menina atônita que assisti as cáspulas sendo jogadas em sua frente (pura imagem óptica), ou até mesmo os corpos mutilados dos meninos, personagens principais do filme, que já traz o tempo na forma dos próprios personagens.
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“Toda realidade continua sendo uma realidade; no entanto, uma vez investida por esse olhar, torna-se um tanto onírica, já que os órgãos dos sentidos dos personagens se libertaram do predomínio da ação e do movimento, e os objetos deixam de ser reflexos de uma ação virtual. A própria ação flutua no meio da situação e não tem com ela um encadeamento orgânico. O cinema de ação dá lugar a um cinema de vidente” (PELBART, P. O Tempo Não-Reconciliado, p. 8).
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O cinema moderno instaura aquilo que Deleuze denominou de opsignos e sonsignos e também, mais adiante, os tactsignos. E em “As Tartarugas Podem Voar”, o vidente vira mesmo um personagem.
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Tudo isso para dizer que a memória enquanto acumulação - a tentativa de fazer da memória um HD, a certeza em que gravar na memória determinados tipos de informação ou poesias - não garante nada. A memória enquanto acumulação é ainda secundária em relação à memória enquanto meio. A memória enquanto transmissão. O HD pode queimar. Se ele queimar e os dados não forem gravados (transmitidos) para outro HD, de nada adiantou tanto esforço.
A memória enquanto acumulação pode ser usada como justificativa para o filme: atualizar a memória de Bom Zezé em formato de película, mas não para o personagem Bom Zezé que ali no meio do sertão vê a “a cidade chegando”, que se vê atônito em relação a tantas informações que chegam. Em “ A Cidade Cargueiro”, roteiro de Aline, é exatamente essa metáfora da “cidade chegando” que produz signos sonoros e ópticos surreais: os meninos atônitos com a chuva de pipa que despenca do céu, o menino que vê a ele mesmo em cima de um jegue-carro (bricolagem entre tradição e modernidade) e o ápice que é o cargueiro que atravessa a campo de visão dos meninos soltando um forte apito (sonsigno) que fecha o filme.
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Percepção e lembrança, matéria e memória, o atual e o virtual coexistem. O passado se consubstancia com presente, já nos falava Bergson. É porque o presente é sempre transformação, quando você pensa em mudar o presente ele já mudou antes de você. O presente é puro devir. Devido a isso nenhuma ação garante uma transformação efetiva, pois sempre há uma zona de indeterminação, uma zona de indiscernibilidade, que não garante a transformação de um futuro.Se a repetição é uma condição da acumulação é só a título de impressão na memória, para mais adiante poder transmiti-la. Repetir, repetir até tornar diferente. Da memória enquanto acumulação a memória como meio. A Memória é uma sinapse entre as gerações.

sábado, 9 de junho de 2007

DOIS METAFILMES ITALIANOS: "Toby Dammit" e "A Ricota"









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por Marcelo Matos


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Casarão65. Santo Antônio Além do Carmo. Privilégio assistir na mesma sessão dois grandes médias-metragens que fazem o cinema falar do cinema. O primeiro filme exibido foi Toby Dammit de Federico Fellini, uma recriação do conto homônimo de Edgar Allan Poe e, na seqüência, A Ricota de Pier Paolo Pasolini, que também é uma recriação, uma releitura da Paixão de Cristo.
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Toby Dammit envereda por um existencialismo niilista onde um pop-star inglês que chega a Roma para atuar num filme que segundo os diretores é um filme de esquerda. Eloqüente mestres do caô, os produtores do filme começam a oferecer a Toby as chaves da interpretação dos signos que permearão o filme no qual ele será o ator principal: os seios das mulheres representam o “vão refúgio irracional”; os foras das lei, os anarquistas; o prado, a margem da história, etc.. Tentativa vã de convencer Tobby.
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Se Toby é um niilista é porque está naquela condição em que não é possível sair do cinema industrial, mas também é insuportável permanecer nele. “O que o trouxe até aqui” pergunta-lhe a repórter. “A Ferrari que me prometeram” – responde. Se pelo menos não há mais cinema, que dêem a Toby a sua Ferrari. Por isso Toby é um decadente, e para poder pensar contra o cinema é necessário, antes de tudo, pensar contra si mesmo: “Eu não sou um grande ator. Meu último diretor reclamou que eu estava bêbado”. Dentro de um “glamuroso” festival de cinema, Toby irá mostrar que a decadência que é ele, na verdade é a decadência de uma comunidade cinematográfica medíocre: a sua náusea revela o nojo que é a indústria do cinema e seus rituais (a recepção das vedetes, as entrevistas, as entregas dos prêmios).
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Fellini, através de Tobby, mostra um cinema como uma indústria da corpolatria: atrizes completamente esvaziadas que nada dizem, que nada tem a mostrar a não ser o clichê de um corpo vazio. “Estou muda de emoção. Só posso falar, obrigada”. Não seria essa beleza vazia e sexista o demônio do cinema que nos sorri aterradoramente? “Você já viu o Diabo” – perguntam-lhe. “Sim. Ele é simpático e alegre”. Só resta a Toby, pegar a Ferrari que lhe prometeram e acelerar freneticamente como se estivesse sobre uma finíssima superfície de gelo: qualquer parada pode ser muito arriscada, a superfície pode fender-se. E assim, Toby acelera, acelera, acelera... numa montagem alucinante. Parece estar num labirinto, cujas ruas são habitadas por seres sem vida, tal como o cinema criticado por Fellini? No final da corrida Toby choca-se com cavaletes que estavam no meio da pista para impedir a passagem. “A onde você vai imbecil. A ponte está quebrada. Vá pelo desvio” – grita um mendigo. Ele solta do carro e avança em direção ao abismo. Do outro lado está a Diaba. Toby parece intuir que o tal desvio não vai dar em lugar nenhum. Entra na sua Ferrari e acelera como nunca antes. Só lhe resta pular em alta velocidade dentro do precipício para ter a sua própria cabeça, decepada, na mão Dela.
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Já a referência de "A Ricota" parece ser completamente outra. Se o existencialismo prepondera do filme de Felini, uma abordagem cristã-materialista torna-se evidente no média de Pasolini. Lembremos que "A Ricota" começa com dois trechos bíblicos, aquele da entrada de Jesus no templo: “Não há nada oculto que não tenha que se manifestar. Nada acontece de modo oculto, mas para que se manifeste. Se alguém tiver ouvidos para ouvir que ouça (...) e jogou as no chão as moedas dos banqueiros e jogou ao ar as bancas e aos vendedores de pombos disse: levem-nos daqui e da casa de meu Pai não façam um mercado”.
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O Cinema é o templo de Deus (estamos falando de um cineasta italiano que tenta fazer o cristianismo dialogar com o marxismo), um lugar de contemplação e não de mercado. A tradição do cinema seria hoje “certas ruínas antigas das quais ninguém mais lhes percebe o estilo ou a história. E certas horrendas construções modernas que, ao contrário, todos percebem”. E tal como o templo que Jesus encontrou, Pasolini constrói o set de filmagem que aparece no filme. As pessoas que lá estão trabalhando não fazem nada, os atores - completamente descomprometidos - dançam freneticamente enquanto uma mulher faz strip-tease. Um lugar de completo desrespeito.
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No entanto, se os comerciantes, no caso de Jesus, devem ser expulsos do templo, Pasolini não faz o mesmo. Haveria cinema sem comerciantes? Assim, não há possibilidade de expulsa-los. A única possibilidade é colocar a miséria dentro do próprio cinema. E lá está Strice, o “ladrão bom”, que vende o cachorro da madame, que comeu a sua comida, para poder comprar uma ricota, enquanto a mesa de cena está completamente repleta de queijos, frutas e vinhos. A comida do cinema não serve para saciar a fome dos famintos.
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Diferentemente do Fellini nauseante de Toby Dammit, o Pasolini de A Ricota pega pela comicidade. As coisas parecem ser invertidas já que normalmente é Fellini que abusa da comicidade e é Pasolini que parece tratar as coisas com um certo peso. Mas é o próprio Pasolini que nos lembra quando o repórter pergunta ao diretor do filme (que é interpretado por Orson Welles). “Qual a sua opinião sobre o nosso grande diretor Fellini”. Eis que o diretor responde: “Ele dança, ele dança”. Porém em A Ricota vemos um Pasolini satírico, cômico e dançante. O próprio uso da imagem acelerada, que no filme de Fellini vem junto ao desespero da linha de fuga Toby, no média de Pasolini é a cômica e imoral vontade de comer que leva Stracci a morrer na cruz.