domingo, 10 de junho de 2007

MEMÓRIA E IMAGEM-TEMPO

por Marcelo Matos
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[este trecho é parte da discussão de elaboração do roteiro “Bom Zezé: a antena do Sertão” de Diego Haase, realizada em março de 2006]
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Da imagem-movimento a imagem-tempo. Não seria essa a grande passagem que a descendência neo-realista italiana operou na história do cinema? Toda a confusão da heroína em “O Grito”, de M. Antonioni, e a sua única reação é gritar quando aquele que ela ama tem um desmaio súbito e despenca do alto da torre. Ou o pescador-revolucionário, em “A Terra Treme: o episódio da Maré” de Luchino Visconti. Depois de chegar na eminência de uma revolução ´Ntoni vê todo o seu barco (a sua única possibilidade de sair da exploração dos atravessadores de peixes) ser destruído pela tempestade; ou ainda em “O Eclipse”, também de Antonioni, quando depois de diversas desilusões amorosas a personagem é esvaída num espaço vazio que é tragado pelo branco estourado de uma luz. Até mesmo em “Os Ladrões de Bicicleta”, de De Sica, onde uma mísera bicicleta é a impossibilidade do desempregado arranjar um emprego.
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No entanto, mais do que as temáticas sociais, mais do que o fato de realizarem filmes com atores do povo, o neo-realismo operou uma mudança de regime da imagem no cinema. A passagem de um tipo de narrativa a outro, mas sobretudo duas formas distintas de pensar o tempo dentro do cinema: da imagem-movimento do cinema clássico à imagem-tempo do cinema moderno (tese deleusiana). Se no cinema clássico teríamos atores que sabiam muito bem reagir à situação isso não acontece mais. No neo-realismo, os personagens são tomados em acontecimentos que os ultrapassam: o desmaio em “O Grito”, a tempestade em “A Terra Treme”, a miséria em “Os Ladrões de Bicicleta”. Neste último, quando ele está tão certo de como deve agir, trocar os seus lençóis por uma bicicleta, ou até mesmo quando a sua bicicleta é roubada e ele tenta roubar outra, é a impossibilidade do acontecimento que impera.É que uma espécie de paralisia motora, como em “O Grito”, obriga os personagens a ver e ouvir o que está além de qualquer resposta ou ação possível. E é aí que o espectador e o personagem se vêem defrontados apenas com imagem ópticas e sonoras puras, imagens-tempo.
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Atualmente, “Tartarugas podem Voar”, de Bahman Ghobadi é repleto dessas imagens: o menino que grita “cadê meu pai?” dentro das cápsulas de mísseis, ou a menina atônita que assisti as cáspulas sendo jogadas em sua frente (pura imagem óptica), ou até mesmo os corpos mutilados dos meninos, personagens principais do filme, que já traz o tempo na forma dos próprios personagens.
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“Toda realidade continua sendo uma realidade; no entanto, uma vez investida por esse olhar, torna-se um tanto onírica, já que os órgãos dos sentidos dos personagens se libertaram do predomínio da ação e do movimento, e os objetos deixam de ser reflexos de uma ação virtual. A própria ação flutua no meio da situação e não tem com ela um encadeamento orgânico. O cinema de ação dá lugar a um cinema de vidente” (PELBART, P. O Tempo Não-Reconciliado, p. 8).
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O cinema moderno instaura aquilo que Deleuze denominou de opsignos e sonsignos e também, mais adiante, os tactsignos. E em “As Tartarugas Podem Voar”, o vidente vira mesmo um personagem.
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Tudo isso para dizer que a memória enquanto acumulação - a tentativa de fazer da memória um HD, a certeza em que gravar na memória determinados tipos de informação ou poesias - não garante nada. A memória enquanto acumulação é ainda secundária em relação à memória enquanto meio. A memória enquanto transmissão. O HD pode queimar. Se ele queimar e os dados não forem gravados (transmitidos) para outro HD, de nada adiantou tanto esforço.
A memória enquanto acumulação pode ser usada como justificativa para o filme: atualizar a memória de Bom Zezé em formato de película, mas não para o personagem Bom Zezé que ali no meio do sertão vê a “a cidade chegando”, que se vê atônito em relação a tantas informações que chegam. Em “ A Cidade Cargueiro”, roteiro de Aline, é exatamente essa metáfora da “cidade chegando” que produz signos sonoros e ópticos surreais: os meninos atônitos com a chuva de pipa que despenca do céu, o menino que vê a ele mesmo em cima de um jegue-carro (bricolagem entre tradição e modernidade) e o ápice que é o cargueiro que atravessa a campo de visão dos meninos soltando um forte apito (sonsigno) que fecha o filme.
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Percepção e lembrança, matéria e memória, o atual e o virtual coexistem. O passado se consubstancia com presente, já nos falava Bergson. É porque o presente é sempre transformação, quando você pensa em mudar o presente ele já mudou antes de você. O presente é puro devir. Devido a isso nenhuma ação garante uma transformação efetiva, pois sempre há uma zona de indeterminação, uma zona de indiscernibilidade, que não garante a transformação de um futuro.Se a repetição é uma condição da acumulação é só a título de impressão na memória, para mais adiante poder transmiti-la. Repetir, repetir até tornar diferente. Da memória enquanto acumulação a memória como meio. A Memória é uma sinapse entre as gerações.

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