sábado, 20 de dezembro de 2008

Banco de Dados de Roteiros

Simplesmente surreal!

Está disponível na internet o "http://www.imsdb.com" (Internet Movie Script Database) um banco de dados com roteiros na íntegra. Uma pena que tudo esteja em inglês, mas ainda assim vale a pena. Não explorei ainda, mais tive a felicidade de topar com o roteiro dos "Os pássaros", "A Aventura" de Antonioni e de "Babel" do Arriaga, por exemplo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS, de Nelson Pereira dos Santos, 1971


Poderia ter sido aquela mesma história escrita por Hans Staden. Um náufrago europeu que é capturado por uma tribo Tupinambá para ser devorado num ritual antropofágico. Passa um longo tempo entre os índios aos cuidados de uma cunhã que tem a função de cuidar e engordá-lo para ser abatido.

Na versão oficial de Hans Staden, ele consegue fugir engabelando os índios com sua lógica cristã de um Deus mais poderoso que os deuses dos indígenas. A versão mais lógica, no entanto, era a de que Hans Staden era um chorão e os tupinambás se recusavam a comer seres covardes, já que comer o outro significava também adquirir determinadas propriedades de sua essência (ou melhor, incorporar o incorporal). Para o ritual funcionar, era necessário que o devorado fosse um guerreiro, com coragem e sem medo da morte.

Provavelmente, o final do filme foi inspirado no “Tratado Descritivo do Brasil de 1587” onde Gabriel Soares de Souza conta que era muito comum o apaixonamento daquele que iria ser devorado pela cunhã que dele cuidava. Eles fugiam e iam ter o filho em outro lugar, começando nova vida longe da aldeia.

Mas a genialidade de Nelson Pereira dos Santos modifica esta narrativa dando um sentido mais digno e ao mesmo tempo mais perverso. Um sentido que localiza o ritual antropofágico dentro da inevitabilidade da contradição do processo de colonização.

No dia anterior ao ritual, a cunhã e o europeu estão sozinhos numa linda praia deserta.

- Chorarás? – pergunta a cunhã
- E tu? – replica o francês.
- Sim, ficarei triste.
- Mas logo me comerás.

Num flerte, ela começa a seduzi-lo ao mesmo tempo em que lhe conta como será o ritual.

- Que devo fazer durante a festa? – pergunta o gringo.
- Mostrar que és valente.
- Tens que correr... e todos nós correremos atrás de ti.
- Corre velozmente como um guerreiro. Não conseguirás escapar, mas serás respeitado. Irão trazer-te de volta e as mulheres pintarão a tua cabeça. Terás que dançar por um instante, amarrado a uma corda. Cunhambebe irá trazer a ibirapema [um tacape usado pelos tupinambás]. Deixarão que tu atires frutas e pedras naqueles que irão te comer. Então Cunhambebe dirá: "Estou aqui para te matar. Porque tua gente matou muitos dos nossos." Deves responder: "Quando eu morrer meus amigos virão para me vingar."
- Repete!
- Meus amigos virão para me vingar.
- Não..."Quando eu morrer meus amigos virão para me vingar."
- Quando eu morrer, meus amigos virão para me vingar.
- Então Cunhambebe levantará a Ibirapema. Irá golpear-te bem na cabeça.
- E depois?
- As mulheres jogarão água quente sobre teu corpo, cortarão os teus braços e as pernas e todos irão comer um pedaço.

Chegou a hora e o francês comporta-se como um digno guerreiro aceitando o seu fim pelo amor de sua amada cunhã. Profere a frase que aprendera no dia seguinte e a Ibirapema desce sobre sua cabeça.

Além do fato de Nelson ter modificado a narrativa para uma dignidade do europeu em ser devorado. A frase “Quando eu morrer meus amigos virão para me vingar” - que a sociedade tupinambá, através da cunhã faz o francês dizer - é completamente dúbia. Uma coisa era um tupinambá ouvir isto de um tupiniquim, para quem a guerra também era o motor da sociedade. Uma guerra ética que visava a perpetuação de ambas as tribos num território comum. Uma outra coisa é ouvir isto da boca de um europeu no meio de um ritual antropofágico.

E os amigos do europeu cumpriram a promessa e vieram trazendo a infelicidade, o ciúme, o niilismo, a fome e a doença para a Terra Brasilis.

Com certeza uma das grandes cenas do cinema nacional.

Obs: Os diálogos foram retirados da legenda traduzida por mfcorrea da comunidade Making Off pois o filme é falado em tupi e em francês.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Conto Hiperrealista de um Cinema Terceiro Mundista


Tem coisas que só podem acontecer na Sala Walter da Silveira. O filme era Finyé, de Souleymane Cissé (1982). A Moça é repreendida por seu pai, um General do exército que ocupa o poder em Mali, por namorar um jovem pobre, colega seu de faculdade que participava no movimento estudantil contra a ditatura, onde seu pai exerce um papel importante.

“Aiiiiii, aiiiii, volta, volta, volta!! Sai, sai. O que é isso? O que está acontecendo?”.

Um menino com seus nove anos de idade sai de dentro do escuro da sala correndo feito uma liberdade, malmente contornado pela luz que emana da tela do cinema, que eu dividia unicamente com uma senhora recém-levantada.

Aiiiiiiiii. Não pode! Ficar aqui não pode.

Ela é maluca, ela é maluca – falou alto para si mesmo o menino sem camisa e de cabelos encaracolados de negritude. Entrou na fila em que eu estava sentado. A senhora se acalmou e voltou ao seu lugar. Ela é maluca, ela é maluca. Sentou ao meu lado. Tio, me dá uma moeda pra eu comprar uma comida (Tenho não).

Olhou para a tela. Que filme é esse? (Psiuuuu). Paga pra entrar é? (Psiuuuuuuuu). Tio, qual é o nome desse filme? (Esqueci). Demorou um tempinho contemplando o filme e voltou. Todo mundo deste filme é negro, é? (É). É no Brasil, né Tio? (É na África). Onde? (África) Aquele é polícia? (É, é o General). O que é que ela está falando. (Ela está oferecendo um dinheiro para ela). Por que elas se vestem assim? (É por que lá a roupa é diferente daqui). E ela é mulher do General? (É) E aquela (Também). Ele tem duas mulheres. Eta, ele tá batendo nela, eta!!!!! (Psiiiiiiiiiiiiiu. Fala baixo, aqui não pode falar alto, não). Por que ela bateu nela? Ciúme, né? (Não sei, não consegui entender). Ele é rico? E ela quem é? (É eles são ricos, ela é a filha do General). Muda a trama. E esse? Ele é Chefe, mas é pobre, né? (Ele é avô de Bá, o chefe sábio de um povo lá da Àfrica. Ela é apaixonada pelo neto dele). A moça se agacha para pegar água em um poço na casa de Bá, seu amado pobre. Este poço aí existe até hoje, sabia? (Sabia). Este balde também. Olha, a maluca está indo embora, ainda bem. Fica olhando para trás contemplando a imensidão daquele cadeirume depois da senhora se retirar.

Tio, eu sou negro? (Você é negro?). Sou (Então, você é).

O menino olha para trás num susto e vê o lanterninha atirando luz por todos os cantos, passa pela fila em que estávamos. O menino tinha se abaixado, mas - no retorno - a luz lhe acertou em cheio.

Estou vendo o filme. (Pode deixar ele aí, que ele está tranqüilo). [Vamos, vamos, não pode ficar não. Este filme não é para crianças, vamos]. Ele passa correndo pelo lanterninha e some na escuridão de onde tinha vindo.

domingo, 16 de novembro de 2008

BAMAKO: a potência da fabulação e os limites da democracia

Crítica Vencedora do I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira -
Também disponível: www.dimas.ba.gov.br/2008.1/dastaques/2008.11/critica2_marcelo_oliveira.doc
Por Marcelo Matos de Oliveira





Desta vez, não foi na cidade francesa de Evian, nem em Sea Island nos Estados Unidos, muito menos em Heiligendamm na Alemanha: lugares que sedearam as reuniões de cúpula do G8. Agora, a sede das decisões é um quintal humilde de uma casa africana em Bamako, capital de Mali, um dos países mais pobres do mundo: um cenário esquisito onde advogados e juízes dividem espaço com bodes, cachorros, crianças e mulheres que lavam e tingem roupas. É com o nome da cidade onde é realizado este julgamento contra o FMI e o Banco Mundial que Abderrahmane Sissako batiza o seu filme.

Se o G8 são reuniões de cúpula - onde se gasta uma fortuna -, a reunião em Bamako é pobre, tão precária quanto o cotidiano do povo de Mali. O filme, quase completamente rodado em cenas externas, é um tribunal a céu aberto, como se a ferida da África estivesse aí, exposta ao mundo. A câmera simples, com poucos movimentos, revela a simplicidade de um cinema que quer expressar a simplicidade de seu povo.

Mais do que um espaço simbólico criado para dar voz àqueles que não tem, o filme é um Acontecimento. Advogados africanos são convidados para elaborar suas defesas e atuarem de improviso frente ao juri, a câmera, ao espectador. Desta maneira, o que Bamako opõe a ficção não é o real - não é a verdade que sempre é o ponto de vista dos colonizadores e dos dominantes-, mas sim a “função fabuladora dos pobres” - como gosta de dizer Gilles Deleuze - e sua potência de produzir memórias e lendas. Assim, Bamako produz uma narrativa para os problemas do continente africano a partir do ponto de vista dos próprios africanos. É isto, mais do que as questões que se propõe a informar, a expor e a tratar, que faz de Bamako um filme político. Como disse Jean Rouch: “não será um cinema de verdade, mas a verdade do cinema”.

Sissako não opera a partir de dualismos estanques. A colonização não é dividida entre europeus e africanos. Como sabemos, uma parte dos africanos colaboraram - e foram até mesmo essenciais - no processo de escravidão e na exploração do continente. Parece ser isto o que Sissako quer dizer quanto uma família assisti na TV o western Death in Timbuku, onde cowboys brancos e negros assassinam a população negra de um lugarejo africano.

A um olhar desatento, Bamako pode ser um filme discursivo. Todavia, o falatório sempre é quebrado por imagens poéticas: seja uma criança que pega um papel de um bolo do processo e transita esquecida por entre as pernas dos adultos, seja insetos que galgam montes de areia, tal como os malineses que atravessam o deserto para tentar uma vida melhor na Europa. Todavia, a genialidade de Sissako está em quebrar o discurso dentro do próprio jogo democrático através de cantos e silêncios. Se isto acontece, talvez seja porque Sissako não acredite unicamente no poder do discurso como possibilidade de transformação social. Assim, o diretor aponta a limitação das regras da democracia que, comumente, são pautadas na linguagem, na argumentação lógica e na espera do momento que é reservado para cada pessoa falar: os preparativos para o início do processo estão ficando prontos, um senhor dirige-se ao microfone e começa a desabafar a situação de seu país, sendo logo contido por uma advogada negra que solicita que volte ao seu lugar e espere a sua vez de ser chamado. Resignado não entende como se pode dissociar a fala da vontade de falar.

Mas o tribunal de Sissako comporta formas de expressão que um tribunal comum talvez não suportasse. O discurso é interrompido, também, por senhores que cantam, dirigindo-se mais ao coração do que ao cérebro da audiência. No entanto, um dos momentos mais belos do filme, é quando um ex-professor dirige-se ao microfone e permanece, durante todo o tempo que lhe foi reservado, sem dizer nada. O silêncio não é visto por Sissako como impotência do discurso, mas como aquilo que não pode ser dito, como aquilo que não existe na linguagem, que não pertence à ordem do discurso. Existe uma dívida irreparável para com a África, e isto está tão óbvio, que não se tem mais o que dizer. A modernidade não foi concebida para os países do terceiro mundo, por aqui o que aconteceu foi uma modernidade às avessas, como diz o sociólogo Boaventura de Souza Santos. Assim, enquanto a conferência decorre, Chaka está adoecido na cama, sem remédio e sem hospital.

Talvez seja por conceber a globalização como sendo estranha aos africanos que Sissako insiste em colocar objetos modernos que não funcionam em seus filmes. As coisas produzidas do lado de lá, nem sempre funcionam do lado de cá. Se em “Esperando a Felicidade” era o pára-sol de um carro que constantemente caía tapando a visão do motorista e, também, uma lâmpada que sempre se recusava a acender; em Bamako, é um ventilador que a toda hora emperra, tal como o “projeto da modernidade” com suas promessas para solucionar as desigualdades no mundo. Por isso, o discurso lógico-argumentativo não pode dar conta do problema africano. A democracia tem que comportar outras formas de discurso, forma às vezes extrema, e talvez seja por isso que a arma do policial desaparece no meio do julgamento. Quem a pegou? O que vão fazer com ela? Terminamos o filme sem sabê-lo, talvez porque já saibamos demais. Bamako é o momento em que um quintal africano se coloca como porta-voz de todos os países do Terceiro Mundo.

Como todo esquema democrático é baseado na representatividade, não é toda a população que tem a possibilidade de participar das decisões. Assim, na porta de entrada do quintal onde acontece o julgamento tem um porteiro com uma lista na mão onde consta o nome daqueles poucos que podem entrar. Este paradoxo é expresso numa cena onde, no intervalo do julgamento, os advogados de acusação e de defesa vão falar ao celular, enquanto do lado de fora vemos alguns cidadãos que acompanham o julgamento pelo auto-falante, a estes não lhe são reservados o direito de falar, mas apenas de ouvir.

Talvez não adiante mesmo muito acompanhar todo o julgamento. Assim, em alguns momentos o auto-falante é desligado. A argumentação torna-se exaustiva e vamos caminhando para o final do filme já cansados. De repente, a câmera segue alguém para fora da plenária. O filme acaba de modo que não sabemos qual foi o resultado do julgamento. Talvez seja porque não caiba ao cinema dar um veredicto sobre a questão, mas talvez seja porque cabe ao cinema apontar a impotência do discurso e a velha estratégia de cansar a plenária para que ela perca com isso seu poder de argumentação.

E se o filme termina com uma morte é para pontuar que a vida do africano não se resume apenas à tragédia, pois ainda existem aqueles que prosseguem lutando. Com certeza, não é coincidência o fato de que já é o segundo ano consecutivo (2007 e 2008) que Bamako, capital de Mali, sedia a “Cúpula dos Pobres”, evento paralelo ao G8. O fim das utopias é para aqueles que desistiram de re-criar o mundo.

ENTRE EU ME LEMBRO E SUPEROUTRO: um ensaio sobre a imobilidade

Crítica Vencedora do I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira
Também disponível:www.dimas.ba.gov.br/2008.1/dastaques/2008.11/critica1_marcelo_oliveira.doc
Por Marcelo Matos de Oliveira



Talvez, a grande potência que um texto que Eu Me Lembro possa gerar não esteja unicamente nele, mas em um encontro com Superoutro, filme de Edgar Navarro realizado 15 anos antes. Não se trata de uma comparação, muito menos de um confronto, mas de colocar-se no meio dos dois. Uma crítica que talvez nos traga novas reflexões situa-se exatamente neste intermezzo: nem em um, nem em outro - nem em uma margem, nem na outra -, mas exatamente no meio, numa espécie de terceira margem no rio.

Comecemos por Eu Me Lembro ou o memorial de um homem que escolheu tornar-se cineasta. Na primeira parte, vemos o mundo pelo olhar de Guiga, uma criança que vai descobrindo a vida, a sexualidade, a morte de Deus, as hipocrisias da família pequeno-burguesa, o sexo... As seqüências são costuradas por uma voz-off que dá sentido à passagem de uma a outra. Esta é a parte mais singela e mais bem resolvida do filme. O olhar infantil nos faz entrar em seu mundo e vislumbrar um Brasil preconceituoso, machista, racista e hipócrita. Aqui, nos identificamos facilmente com o personagem, mesmo com a tendência da voz-off de nos tirar do filme.

Na segunda parte, o filme apresenta graves problemas. O Guiga jovem parece perder a força que o Guiga infante trazia. Se na primeira parte, a voz-off conseguia integra-se ao filme pela ingenuidade infantil, na segunda parte ela perde esta característica e em muitas vezes parece irritar o espectador. O personagem principal vai tendendo a deixar de convencer juntamente com a arte e a maquiagem, que vão se desfazendo ao longo do filme. O bigode torto do noivo na cena do casamento da irmã de Guiga é o sinal deste desmoronamento. Ainda assim, o filme mantém-se em pé; parece que vai desmoronar, mas não desmorona. Isto acontece, talvez, porque as imagens tenham saído das entranhas da memória do diretor e, assim, acabam por conseguir atualizar o espírito de uma geração sessentista. São imagens e relatos, acima de tudo, verdadeiros e sinceros. Ao final, o filme encanta como uma decepção adorável.

No entanto, o filme se diferencia da média dos filmes brasileiros pela sua construção dramática, onde o personagem não tem um motivo nitidamente definido, e pelo ponto de vista de abordagem da sociedade brasileira. Em relação a este segundo ponto, Ismail Xavier, numa entrevista a Folha de São Paulo, em 03/02/2007, dividiu os filmes realizados na retomada do cinema brasileiro em três blocos a partir dos tipos dos personagens: o pobre pragmático que ascende na vida, o sujeito da classe média ressentida e o sertão-pop pernambucano contaminado de signos do moderno. Eu Me Lembro parece fugir desta classificação mostrando-se como uma obra rara do cinema brasileiro, um filme de memórias onde a motivação principal do personagem é narrar a si mesmo.

Sabemos das dificuldades de produção e da escassez de verba que o filme atravessou. São estas dificuldades que faz de Eu Me Lembro um quase-fracasso de uma terra, a Bahia, que ficou 18 anos paralisada sem fazer um único longa-metragem (falta quebrada por Três Histórias da Bahia em 2001). Para nós, baianos, Eu Me Lembro é um filme de transição, é uma fita que abre uma gama de possibilidades e mostra a potência que a Bahia tem para fazer cinema. Potência que ficou solapada e reprimida durante toda década de 90 e que parece querer explodir em Eu Me Lembro. Talvez por isso, o filme traz mais intenção - ver a quantidade de movimentos com a grua utilizada - do que aquilo que ele realmente consegue realizar. Espírito completamente diferente de Superoutro, onde o cineasta consegue atualizar toda a sua potência.

Se Eu Me Lembro é um filme essencialmente no passado, com suas vinhetas e jingles de época, Superoutro é uma narrativa que se desenrola essencialmente no presente. O personagem é acima de tudo imanência: “acorda humanidade!”. Não é muito difícil ver neste média-metragem a vontade de potência do super-homem nietzscheano.

À imanência de Superoutro contrapomos a transcendência de Eu me Lembro. Se no primeiro o personagem fala por si, no segundo, o narrador só consegue dar sentido a narrativa através da voz-off. Ele não está mais dentro do personagem, como no filme anterior, e sim acima dele. A voz-off é a voz transcendente da consciência do sujeito pensante (o cogito cartesiano) que sobrecodifica o passado, e também as imagens, durante toda a película. Isto acontece até nos momentos em que ela se cala e os personagens entram em cena, pois não esquecemos que ali é uma memória consciente, ou uma memória voluntária do narrador, como preferiria dizer Marcel Proust. Neste sentido, Eu me Lembro é um romance de formação, é um relato sobre si mesmo, é a maneira pela qual alguém se torna o que é. Se Super Outro é o “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche, Eu Me Lembro é o “Ecce Homo” de Edgar Navarro. Também somos aquilo que contamos que somos.

Um mesmo signo - o pulo do Elevador Lacerda - marca bem as duas margens onde estão os dois filmes. Em Eu Me Lembro, Guiga é humilhado pelo pai: “Por que você não se mata menino? Se joga do elevador Lacerda” - diz. Se aqui, o pulo vem de uma causa externa, em Superoutro, o mesmo signo aparece a partir de uma potência interna de um homem que tresvalorou todos os valores e “realmente” pulou do Elevador Lacerda para voar e elevar-se sobre toda Salvador. Não há a queda em um abismo e sim um vôo sobre a fissura do mundo como vontade de vida.
Este encontro entre os dois filmes nos faz pensar em Eu Me Lembro como sendo um filme de paralisia. Paralisia que é a da própria memória que deve reter a ação do corpo para que nos lancemos no passado, mas também a paralisia da produção cinematográfica baiana durante 18 anos. Não é esta imobilidade que parece perdurar durante todo o filme?

As primeiras imagens P&B, retiradas de acervos pessoais de algumas famílias baianas tradicionais, são bem significativas. Uma em particular nos chama a atenção: uma negra põe uma maçã na cabeça, um rapaz branco com uma espingarda posiciona-se. Ela fica ali paralisada, imobilizada, esperando o branco que mira e, por fim, acerta a fruta sobre sua casa. A negra se abaixa, pega a maçã do chão e dirige-se sorrindo para a câmera mostrando o furo da bala. Imagens de um cotidiano anódino, mas carregada de sentido histórico e de sentido, também, para o próprio filme.

As últimas imagens parecem apontar no mesmo sentido. Depois de tomar um ácido lisérgico, Guiga fica imóvel, recostado numa árvore e vê desfilar na sua frente uma legião de memórias. Porém, no último plano do filme, ele vê o próprio Navarro desfazer a paralisia numa espécie de ritual: a equipe do filme gira de mãos dadas numa roda e a grua – instrumento de trabalho durante todo o filme – aparece. Plano curioso, pois ao mesmo tempo em que é o presente do diretor, é também o futuro do personagem. Mais curioso ainda, pois é o futuro do cinema na Bahia. A partir de Eu Me Lembro, podemos dizer que, finalmente, saímos da imobilidade. Que o cinema baiano seja baiano, que cinema baiano seja cinema.

sábado, 17 de maio de 2008

A NARRATIVA EM BLANCHOT

Moby Dick


"A narrativa é um movimento para um ponto, não apenas desconhecido, ignorado, estranho, mas tal que parece não ter, antecipadamente e fora desse movimento, qualquer espécie de realidade, e tão imperioso, no entanto, que é somente dele que a narrativa tira o seu encanto, de tal modo que ela não pode sequer ‘começar’ antes de o ter atingido, e, no entanto, apenas a narrativa e o movimento imprevisível da narrativa lhe fornecem o espaço onde o ponto se torna nela, poderoso e atraente.

Ela não ‘relata’ senão a si própria, e esse relato, ao mesmo tempo em que se efetua, produz o que conta, só é possível como relato se realizar o que se passa nesse relato, pois detém então o ponto ou o plano em que a realidade que a narrativa ‘descreve’ pode incessantemente unir-se à realidade como narrativa (...). Por isso não há narrativa, por isso não deixa de haver". (Blanchot, Le livre à venir, In: PARENTE, André: Narrativa e Modernidade – os cinemas não narrativos do pós-guerra, p.30)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Depois de um tempinho, revisitando Dubois, em uma aula simpática e irônica de classificações:

O cinema “primitivo”:

“É o cinema das origens, anterior a 1915 e ao Griffith... cinema das descobertas e das experiências, da inocência, das primeiras sensações fortes, da profundidade e do plano-sequência “brutos”, das trucagens selvagens e ingênuas. É um cinema em bloco: o filme é a filmagem, completa, sem perda. É como uma fotografia no tempo.


O cinema “clássico”

Durante cerca de trinta anos (sua era de ouro é 1915 -1945, em Hoolywood) de D.W. Griffith a Alfred Hitchcock, de Serguei Eisenstein a Fritz Lang, de Ernst Lubitsch a John Ford, de Howard Hawks a Jean Renoir, é o cinema que fratura a “cena” primitiva e quebra o bloco, produz a decupagem, a escala de planos, a lógica labiríntica dos cortes, as leis (?) da montagem; articula o cinema como linguagem e constrói seus grandes parâmetros (espaço, tempo, ator, cenário, narrativa e som); coloca o espectador na posição não mais de voyeur amedrontado, mas de arquiteto do sentido e dos efeitos. Em termos dramáticos e cenográficos, o cinema “clássico” é aquele do espaço em off, do prolongamento imaginário da ficção, do suplemento de sentido: cinema da verdade oculta nos bastidores, do “segredo atrás da porta”.

Fritz Lang. Secret beyond the Door, 1948

(...) E toda a arte desse cinema será a de jogar com nossa expectativa em relação a este suplemento, com nossa inteligência de espectador e nosso desejo de ver, de saber e de saber mais. É um cinema da mais-valia, que visa fazer fruir a busca, incessantemente desencadeada e adiada, daquilo que há atrás, através, a mais. A narrativa é agenciada com este único objetivo; os atores ( seus gestos e olhares), os diálogos, os objetos e o cenário (portas, janelas, espelhos e ruas) estão lá para balizar o trajeto do espectador na busca do “segredo”.

O cinema “moderno”

É aquele que tomando os clássicos como pais, irá com força e violência variáveis, afastar-se do classicismo instituído, e recusar aquilo que, neste, se instala no artifício e na “boa qualidade”, que se esclerosa na rotina da máquina bem azeitada, de eficácia previsível e excessivamente controlada. É um cinema da ruptura, mas de uma ruptura em relação a um jogo funcionalista excessivamente articulado. O cinema “moderno” é aquele do pós-guerra. (que vem depois da ruína, desastre, da falência mundial, da mise-em-scène-propaganda)

...

O cinema moderno é, em todas as acepções do termo, um cinema do plano. Ali onde a dramaturgia clássica trabalhava a crença de um “segredo atrás da porta”, a cenografia moderna prefere suprimir todo mergulho na profundidade; nela, o espaço, se fecha sobre si mesmo: não há nada a ver atrás, nenhum suplemento no espaço off; nem cena nem bastidor; apenas uma superfície luminosa( como um quadro-negro ou uma folha branca); o diretor dá lugar ao “autor”, a mise-em-scène da lugar à “escrita” plana. É um cinema da frontalidade: tudo está lá, na imagem, na superfície, em um só e mesmo plano. O espectador está de frente, seu olhar bate na tela e ricocheteia.

François Truffaut. Noite Americana, 1973


Cinema do plano, também, enquanto habitado pela idéia da filmagem, do traço a reter daquilo que ela comporta de mágico (ou de terrível): estas fagulhas de real que vêm respingar na película, dar-lhe sua cota de verdade, de modo que cada plano, para os modernos, seja uma aventura. Algo do cinema primitivo impregna assim o cinema moderno: um certo gosto pela experiência, um certo sentido de inocência – ambos atravessados, em todo caso, por um saber (e um desejo) do cinema “clássico” : a cinefilia, a citação, o fetichismo dos “pais”.

O cinema dos anos 80 ou cinema “ maneirista” ou um cinema do “depois”

...feito por quem tem a perfeita consciência de ter chegado tarde demais, num momento em que certa perfeição já fora atingida em seu domínio. (...)Como filmar hoje, depois de tudo, uma cena de amor, um diálogo, um assassinato, um beijo? Todo o peso da tradição anterior e de sua excelência está lá, e ele pesa e chega a bloquear o trabalho do cineasta. E é preciso encontrar a maneira, a maneira de se libertar deste peso, de re-fazer, de filmar de novo o encontro de um homem e uma mulher. (...) Daí também as “maneiras” freqüentemente sinuosas, as contorções, as anamorfoses, as sofisticações que o cineasta se impõe, e que autorizam a falar, a este respeito, de cinema do artifício, do factício, do excesso, da panóplia, do cenário ostensivamente teatral.

Jean- Luc Godarg. Passion, 1982


Um cinema da imagem “folheada”

Por outro lado, cenograficamente, o cinema maneirista coloca ainda, de outra forma, a questão do espaço: não se trata mais de saber o que se passa atrás, na profundidade de campo, nem o que se mostra por cima, na superfície da imagem. A questão é, antes, a de qual imagem ver sob a imagem, dada a natureza desta estética das imagens “em camadas”, deslizando umas sobre as outras, como num folheado: sob a imagem, já uma imagem. ( ...) O cinema é seu próprio pano de fundo.

Dubois, P. - Cinema, vídeo e Godard, pg. 145 - 150

Nota de rodapé:

as considerações de Dubois tem uma pretensão explicita: reverenciar as "inovações" trazidas pelo formato analógico à produção audiovisual ( viva o vídeo!). Ou seja, em tempos de histórias repetidas o que vale é a forma de re-contá-las. Argumento muito válido, especialmente se pensarmos na "função criativa" dos formatos digitais hoje em dia...

Postado por Aline Frey



segunda-feira, 7 de abril de 2008

O DEVIR-CINEMA DA FOTOGRAFIA

Arlindo Machado, em “Pré-Cinema e Pós-Cinema”, mapeou um devir-cinema da fotografia. Foram experiências em que a fotografia intentou o movimento.

Em 1912, o fotográfo Jacques-Henri Lartigue com uma câmera com um obturador de plano focal iria criar um representação do velocidade, muito utilizada até os dias de hoje pelos desenhistas.


Também em 1912, Étienne-Jules Marey imprime fases distintas do movimento na mesma película tirando com isso uma espécie de gráfico do movimento.

Atualmente, o francês Fréderic Fontenoy produziu as "créatures", que são espécies de corpo-sem-órgãos: uma dupla-captura entre o movimento corporal e a câmera fotográfica com obturador de plano focal e exposição baixa.

O húngaro Andrew Davidhazy realizou experimentos com fotografias de 360º , uma espécie de câmera que permite fotografar por um determinado intervalo de tempo obtendo assim objetos achatados.

sábado, 22 de março de 2008

OS NEGATIVOS, de Angel Dièz: o campo pré-linguístico no documentário

“Os Negativos” é contraditório, por excelência. À grosso modo, a contradição se expressa durante todo o filme através da oposição de dois tipos de planos distintos que se opõem termo a termo: um onde se desenrola a entrevista – onde (quase) tudo acontece - e outro, silencioso e vazio, onde (quase) nada acontece. Estes são planos perspectivados de corredores, sala, escritório, área externa da casa: pura duração da matéria inerte e do espírito que a contempla.


A entrevista é realizada num quadro escuro e chapado pela câmera que filma o filme que passa na superfície de um aparelho de televisão. Esta experimentação realizada por cima da entrevista é bem tímida, porém suficiente para gerar um efeito de superfície. E é nesta superfície reforçada por uma textura que o discurso irá desfilar o seu império da verdade, mesmo que seja uma verdade contraditória.


Se o efeito de superfície é tímido, assim também se comportaram os planos silenciosos e vazios que vêm negar - termo a termo - o segundo: ao escuro do quarto, ele opõe o branco das paredes; a superficialidade redundante, a perspectiva infinita dos corredores; ao verbo tagarela, o silêncio.


Contraditoriamente, os planos vazios não são suficientemente potentes para rachar o outro. Ficamos na esperança do acontecimento: que a superfície se rache, que o fundo suba a superfície. Nada acontece! A superfície e o verbo mantêm-se intactos até o fim do filme.


“Os Negativos” utiliza-se do dispositivo clássico da entrevista (onde o verbo é rei por excelência), experimenta com ela, mas é uma experimentação que não chega a se imprimir com vontade na tela. “Os Negativos” é um filme tímido que insinua mais do que realiza, no melhor sentido que esta expressão possa ter. É um filme que traz a potência de algo que poderia ter acontecido, mas que não aconteceu. A contradição é a própria consistência do filme: é o meio pelo qual se mantém em pé.


Mas o que o filme insinua? O que é isso que poderia ter acontecido e não aconteceu? O que é isso que queria subir a todo o tempo e que não encontrou espaço? É aquilo que está aquém (ou além, como se queira) do discurso. Isto que queria subir e que não conseguiu rachar o vidro da tela temperado pela textura de 35mm é o campo pré-linguístico, que foi configurado timidamente no filme pelo silêncio e pelo vazio. Por isso ele tornou-se em “Os Negativos” um campo frágil e delicado. Qual o poder da delicadeza do silêncio e do vazio frente à arrogância dos ruídos e do preenchimento do verbo? Destacado do escuro do quarto, o rosto lateralmente iluminado discursa imponente e mantém-se como rei até o fim do filme.


“Os Negativos” vislumbra um caminho para o documentário. Um horizonte onde o campo pré-linguístico tenha força suficiente para puxar o tapete, para rachar a superfície do discurso ultrapassando, assim, a fragilidade do silêncio e do vazio. Este campo pré-linguístico deveria (temos aqui uma questão ética) ser povoado de traços mais intensivos, traços mais potentes, expressões mais intencionais para que o discurso pudesse tornar-se outra coisa que não o lugar da verdade.


“Os Negativos” aponta para uma experimentação a ser ainda realizada e um espaço vazio ainda a ser preenchido. Este “quase” nada que acontece, principalmente nos planos ocos, é um valioso germe de exploração de um campo pré-linguístico para o documentário. Um documentário que liberte o discurso das contradições fazendo-o deslizar na velocidade absoluta da memória, da fabulação, do pensamento e do paradoxo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

CHARLES CHAPLIN: ou quando povo se faz imagem


Foi primeiramente com Charles Chaplin que o povo se fez cinema: “Chaplin ilumina o século XX, porque nele o Povo se faz Imagem”, gritou Glauber Rocha: bombeiros, caixeiro, doceiro, aprendiz, emigrante, comunista, noivo, operário, patinador, maquinista, soldado, músico, peregrino, artista de circo, marinheiro...

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Como é possível “ser tão sozinho em meio a tantos ombros,/ andar aos mil num corpo só, fanzino,/ e ter braços enormes sobre as casas,/ ter um pé em Guerrero e outro no Texas,/ falar assim chinês, a maranhense,/ a russo, a negro: ser um só, de todos,/ sem palavra, sem filtro, sem opala”? (DRUMMOND, Carlos. Canto ao Homem do Povo Charles Chaplin. In: A Rosa do Povo).


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Transcrevo Glauber Rocha: “Em Chaplin estão condicionados valores eternos; por isso negou o originalismo, a masturbação artística e pseudo-inovadores de uma Arte que só nele se realizou como expressão de vida e que só em raros gênios encontrou continuação. Querer situa-lo como Cineasta não o justifica; Chaplin é um complexo artístico que transcende ao Cinema” (In: ROCHA, Glauber. O Século do Cinema).


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Walter da Silveira viu Chaplin transcender o indivíduo rumo a uma profundeza social exatamente na passagem de ‘Luzes da Cidade’ para ‘Tempos Modernos’.

Até Luzes da Cidade, filme anterior a Tempos Modernos “a arte chapliniana consistia no homem chapliniano, em Carlitos, o vagabundo da cartola, da bengala, das botinas rotas e do bigodinho que Hitler plagiou. Era uma arte tirada da vida, era mesmo a vida filmada, tal a ausência de ficção nos seus argumentos. Mas, era, também, uma arte olhada sob o prisma individualista, uma arte que vivia em função de uma personalidade – paria medroso e perseguido, que via na fuga a única solução possível para as suas atribulações. Desaparecido o homem, desapareceria a via, desapareceria a arte: o mundo de Charlot. [...] É o que não acontece em Tempos Modernos. Neste predomina a arte social esta é dirigida num sentido político. O homem chapliniano continua existindo, mas a sua individualidade já interessa menos do que a vida que ele representa. [...] Não é mais ‘um homem perdido no mundo’, ‘inconsciente do seu drama’. É agora alguém que conhece o sentido da existência e que sabe quanto a liberdade é inútil quando não recursos econômicos para gozá-la. Seu aspecto exterior de antigo vagabundo esconde a intima aflição do atual operário, lançado ao desemprego pela mecanização estúpida das fábricas. Carlitos tornou-se um sem-trabalho em busca de colocação, um representante numérico de todo uma classe sofredora” (SILVEIRA, Walter. O novo sentido da arte de Chaplin. In: Revista Ângulos, n. XII, ano VII, dez., 1957, p. 113-117)


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“Ó, Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança” (Drummond).


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“E no fim, aquele quadro genialmente simples, genialmente expressivo, aquele desfecho alegórico como só dois homens sabem fazer no cinema – Chaplin e King Vidor: a estrada longa e deserta, anunciadora de uma nova vida cheia de liberdade, envolta no fulgor da alvorada” (Walter da Silveira).