sábado, 9 de junho de 2007

DOIS METAFILMES ITALIANOS: "Toby Dammit" e "A Ricota"









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por Marcelo Matos


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Casarão65. Santo Antônio Além do Carmo. Privilégio assistir na mesma sessão dois grandes médias-metragens que fazem o cinema falar do cinema. O primeiro filme exibido foi Toby Dammit de Federico Fellini, uma recriação do conto homônimo de Edgar Allan Poe e, na seqüência, A Ricota de Pier Paolo Pasolini, que também é uma recriação, uma releitura da Paixão de Cristo.
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Toby Dammit envereda por um existencialismo niilista onde um pop-star inglês que chega a Roma para atuar num filme que segundo os diretores é um filme de esquerda. Eloqüente mestres do caô, os produtores do filme começam a oferecer a Toby as chaves da interpretação dos signos que permearão o filme no qual ele será o ator principal: os seios das mulheres representam o “vão refúgio irracional”; os foras das lei, os anarquistas; o prado, a margem da história, etc.. Tentativa vã de convencer Tobby.
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Se Toby é um niilista é porque está naquela condição em que não é possível sair do cinema industrial, mas também é insuportável permanecer nele. “O que o trouxe até aqui” pergunta-lhe a repórter. “A Ferrari que me prometeram” – responde. Se pelo menos não há mais cinema, que dêem a Toby a sua Ferrari. Por isso Toby é um decadente, e para poder pensar contra o cinema é necessário, antes de tudo, pensar contra si mesmo: “Eu não sou um grande ator. Meu último diretor reclamou que eu estava bêbado”. Dentro de um “glamuroso” festival de cinema, Toby irá mostrar que a decadência que é ele, na verdade é a decadência de uma comunidade cinematográfica medíocre: a sua náusea revela o nojo que é a indústria do cinema e seus rituais (a recepção das vedetes, as entrevistas, as entregas dos prêmios).
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Fellini, através de Tobby, mostra um cinema como uma indústria da corpolatria: atrizes completamente esvaziadas que nada dizem, que nada tem a mostrar a não ser o clichê de um corpo vazio. “Estou muda de emoção. Só posso falar, obrigada”. Não seria essa beleza vazia e sexista o demônio do cinema que nos sorri aterradoramente? “Você já viu o Diabo” – perguntam-lhe. “Sim. Ele é simpático e alegre”. Só resta a Toby, pegar a Ferrari que lhe prometeram e acelerar freneticamente como se estivesse sobre uma finíssima superfície de gelo: qualquer parada pode ser muito arriscada, a superfície pode fender-se. E assim, Toby acelera, acelera, acelera... numa montagem alucinante. Parece estar num labirinto, cujas ruas são habitadas por seres sem vida, tal como o cinema criticado por Fellini? No final da corrida Toby choca-se com cavaletes que estavam no meio da pista para impedir a passagem. “A onde você vai imbecil. A ponte está quebrada. Vá pelo desvio” – grita um mendigo. Ele solta do carro e avança em direção ao abismo. Do outro lado está a Diaba. Toby parece intuir que o tal desvio não vai dar em lugar nenhum. Entra na sua Ferrari e acelera como nunca antes. Só lhe resta pular em alta velocidade dentro do precipício para ter a sua própria cabeça, decepada, na mão Dela.
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Já a referência de "A Ricota" parece ser completamente outra. Se o existencialismo prepondera do filme de Felini, uma abordagem cristã-materialista torna-se evidente no média de Pasolini. Lembremos que "A Ricota" começa com dois trechos bíblicos, aquele da entrada de Jesus no templo: “Não há nada oculto que não tenha que se manifestar. Nada acontece de modo oculto, mas para que se manifeste. Se alguém tiver ouvidos para ouvir que ouça (...) e jogou as no chão as moedas dos banqueiros e jogou ao ar as bancas e aos vendedores de pombos disse: levem-nos daqui e da casa de meu Pai não façam um mercado”.
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O Cinema é o templo de Deus (estamos falando de um cineasta italiano que tenta fazer o cristianismo dialogar com o marxismo), um lugar de contemplação e não de mercado. A tradição do cinema seria hoje “certas ruínas antigas das quais ninguém mais lhes percebe o estilo ou a história. E certas horrendas construções modernas que, ao contrário, todos percebem”. E tal como o templo que Jesus encontrou, Pasolini constrói o set de filmagem que aparece no filme. As pessoas que lá estão trabalhando não fazem nada, os atores - completamente descomprometidos - dançam freneticamente enquanto uma mulher faz strip-tease. Um lugar de completo desrespeito.
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No entanto, se os comerciantes, no caso de Jesus, devem ser expulsos do templo, Pasolini não faz o mesmo. Haveria cinema sem comerciantes? Assim, não há possibilidade de expulsa-los. A única possibilidade é colocar a miséria dentro do próprio cinema. E lá está Strice, o “ladrão bom”, que vende o cachorro da madame, que comeu a sua comida, para poder comprar uma ricota, enquanto a mesa de cena está completamente repleta de queijos, frutas e vinhos. A comida do cinema não serve para saciar a fome dos famintos.
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Diferentemente do Fellini nauseante de Toby Dammit, o Pasolini de A Ricota pega pela comicidade. As coisas parecem ser invertidas já que normalmente é Fellini que abusa da comicidade e é Pasolini que parece tratar as coisas com um certo peso. Mas é o próprio Pasolini que nos lembra quando o repórter pergunta ao diretor do filme (que é interpretado por Orson Welles). “Qual a sua opinião sobre o nosso grande diretor Fellini”. Eis que o diretor responde: “Ele dança, ele dança”. Porém em A Ricota vemos um Pasolini satírico, cômico e dançante. O próprio uso da imagem acelerada, que no filme de Fellini vem junto ao desespero da linha de fuga Toby, no média de Pasolini é a cômica e imoral vontade de comer que leva Stracci a morrer na cruz.

Um comentário:

Carine disse...

O filme Toby Dimit ñ é homônimo com o conto de Poe.
O conto de Poe que inspirou o filme se chama: Nunca aposte sua cabeça com o diabo.