segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Cães, mors ianua vitae.


Confesso que quando assisti Cães pela primeira vez, não entendi nada. Não conseguia entrar no filme. Por isso, resolvi assistir as duas sessões de sua estréia. Sai do cinema aturdido, lembrando de várias cenas, mas sem conseguir falar para ninguém sobre a confusão que se passava em minha cabeça. A imagem que mais retornava era a do segundo jagunço, que apenas sorria para Inácio e seu pai, sem nada dizer. Uma mistura desmedida entre loucura e crueldade paranóica. Tão profunda que, mesmo em silêncio, conseguia uma eloqüência maior do que o riso histérico do primeiro jagunço, com quem eu brigava para me manter dentro do filme. Essa sensação de descolamento diante de algo que me aturdia, foi o que mais me intrigou diante do filme. Fez levantar questões que vão desde convivência humana a valores de plano, duração de cena e efeito de pós-produção. Soma-se a isto uma impressão de estar diante de uma atualização de arquétipos gregos, uma bricolagem, como os franceses costumam chamar as criações que trazem à tona algo novo por uma recomposição do velho. Para nós, seria a valorização do termo “armengue” elevado a criação de sentido e não falta de “profissionalismo”. É um filme sério, que trata de uma questão intocada. E por isso pergunto para onde, de fato, ele está me levando. Percebia que existiam momentos na sessão que estava completamente absorvido pelo filme e, de salto, a cena roubava a minha sensação e então me apegava a fotografia, mas a estética não dura por si, logo depois, os signos perdiam o transcendente. Antes de alcançar minhas próprias questões subjetivas, era levado a decifrar signos, a ler a cena. Dentro da realidade do filme, deixo de senti-lo para compreendê-lo como uma narrativa não linear que desliza por um único trilho. Mas sei que não são especiais em Cães, pois essas questões ficaram até a terceira vez que o assisti. São questões do próprio ato cinematográfico e por isso estarão sempre presentes.

Encontramos no filme dois seres e três mitologias. A relação Pai e filho, uma convivência indecifrável, depois de certa idade eles sempre se desconhecem, condenados ao silêncio introspectivo de sua masculinidade. Cães, são os próprios, que ladram para seus fantasmas, sem saber que são eles os fantasmas que carregam o estigma masculino de Sísifo, Édipo e Caronte como três fases da vida: o trabalho, a família e a morte. Cães se arvora em querer reunir num curta a carga dessa decepção natural cultivada entre os homens, que carregam em si o desejo de disputarem pelo mesmo território, jogo de poder, condenados pela própria cultura, assassinados pelo seu próprio desejo.

Contudo, assisti Cães pela terceira vez no SEMCINE, de onde saiu como o melhor curta baiano e eu saí com o filme na cabeça, aturdido e feliz. Algo me soou diferente. Além da beleza das imagens, que já eram, o filme mudou para mim. Desta vez, consegui me apropriar de sua realidade, sem muitos problemas. Senti que o filme fluía mais, quase uma teogonia, um mundo particular com estrutura mitológica. Tive a impressão de que a primeira vez que assisti, procurei por uma realidade construída pelo filme. Mas a cabra o rompe em dois, ela é o único elemento que indica a diferença de natureza dos mundos ali vividos. Transforma o filme em dois, antes e depois dos chifres que, aliás, se parecem mesmo com guardiões do portal para o mundo dos idos, forçando a uma tormenta dialética, que reverbera como eco. As imagens se comunicam, mas os personagens não, vivem cada um em seu mundo típico de homem moderno. O cansaço recai sobre um que carrega um outro. Apesar disso, o que carrega não o joga no chão. O que o faz suportar o peso parece vir de fora, como uma condenação. Como Sísifo, rei de Corinto, condenado ao trabalho ingrato de carregar uma pedra montanha acima, para vê-la rolar montanha abaixo e depois recomeçar tudo de novo, sucessivamente. Um castigo que recebe por tentar enganar a morte. Seu filho não teve essa sorte. O trabalho nos envolve numa vida fútil, numa condenação. A relação do homem solitário em seu mundo de afazeres, cuja concreção nasce das suas ilusões, por que tive filhos? No filme, as palavras excedem e roubam a cena, são ricas de sentido, como um cão que não para de ladrar, se arrepender e acusar. Não há descanso para quem carrega a pedra, não há o que fazer, qualquer ação é passiva.

"Estou com sede, pai". O filho moribundo alucina. O pai não cessa de chamá-lo de ingrato, "está vendo alguma coisa Inácio?" No último suspiro, os signos se atravessam pela subjetiva fixa de um virtuoso travelling: a mulher envolve o filho num contexto de ingratidão para o pai. Sísifo usa sua mulher para enganar Plutão e retornar do Hades pela primeira vez. Volta com um corpo sem alma, perdeu o reinado de Corinto, mas conseguiu sair do inferno. No entanto, não cumpre o que prometeu a Plutão, sendo castigado a carregar a pedra. Nessa história, a mulher é o signo que pensa a ausência de si. Apenas insinua com gestos leves e olhar tendencioso. A mulher vermelha e aberta como uma bromélia. Vermelho que não sabemos como foi parar ali, aparece no meio das imagens em preto e branco. A mulher envolve a criança com seu manto. As realidades se insinuam. Os limites entre o 'real' e as alucinações do pai são cada vez mais tênues. Pai e filho falam, mas não há comunicação entre eles, a distância é absurda. Em momento algum, se escuta 'mãe'.

Diante desta alma penada, que é a mulher, o filho não para de gemer. Sua ingratidão é expressa pelos próprios fantasmas que o acusam, tanto quanto o próprio pai. Mas pai e filho estão presos pelo pescoço. A morte não tem um fim em si, mas nos limites que traz consigo. O nó está dado. Como num purgatório, pai e filho passeiam por uma floresta fantasmagórica. O terceiro mito chega depois do enforcado. Para os Gregos, a vida se equivale, se diante da vida vivemos a morte. Depois da morte, em seu mundo, só podemos ter a vida. Se estamos no inferno, para onde o filho está indo? Os dois corpos vagueiam pelo Hades. Incansável, o pai caminha, sem fim, com o filho nas costas. Neste mar de sertão, Inácio geme "estou com sede", nos lembrando que ainda está nas costas do pai. Mas do que sente sede? O pai não dá importância, tentando lhe trazer a consciência de sua culpa. Diante desses sentimentos universais, com personagens universais dentro de um cenário desertificante, somos incapazes de permanecer indiferentes a obra. Mas acessamos um estado de observação qualquer. Representação do amor paternal como um azar pela "ingratidão de Inácio". Como pagar aos pais tudo o que fizeram por nós, senão com a própria vida? O pai ainda não sabe que está sendo o barqueiro, Caronte, a levá-lo para o além mar dessa floresta de frutos pecos. A consciência paternal ladra para o filho moribundo as cinzas de suas derrotas.

Sem a sua pedra para tabalhar, Sísifo não existe. O filho parte, ao pai resta o ressentimento e a solidão. Sentimos que essa lucidez incomoda no filme, por nos deixar passivos perante a indignação do pai, ela paralisa. Entre o rio e a árvore, sob uma tentativa de atualizar os mitos, o tempo passa indiferente. Se antes se podia carregar algo, agora nada mais resta. Cães é uma representação sincera da difícil relação possível entre pais e filhos; torna-se um filme belo por isso. Parabéns Adler Paz e Moacyr Gramacho, diretores do filme.