domingo, 2 de agosto de 2009

NEGO FUGIDO: a classe média no cinema baiano

por Marcelo Matos de Oliveira

Dentro da filmografia do cinema baiano produzida neste período de retomada, Nego Fugido – curta dirigido por Cau Marques e Marília Hughes - é um filme de crise, e tal como toda crise é também uma ruptura.

Com pouquíssimas exceções, o cinema baiano veio se fazendo em cima de dois personagens culturais: o sertanejo e a criança pobre. Lançando mão do primeiro foram produzidos: "Na Terra do Sol" de Lula Oliveira, "Cega Seca" de Sofia Federico, "O Anjo Daltônico" de Fábio Rocha, "Cães" de Adler Paes e Moacyr Gramacho e "Revoada" de José Humberto que está ainda em fase de finalização. O segundo, a figura da criança pobre, surge em filmes como a "A Cidade Cargueiro" de Aline Frey, "Dez Centavos" de Cesar Fernando, "Esses Moços" de Araripe, "Carreto" de Marília Hughes e "Trampolim do Forte" de João Rodrigo, os dois últimos também em finalização.

Uma pergunta sempre me rondou a cabeça: se o cinema baiano é produzido pela classe média, por que ela não aparece nas telas?

Com Nego Fugido, temos - pela primeira vez de maneira enfática - personagens classe média encabeçando uma narrativa (a exceção talvez seja “Eu Me Lembro”de Navarro): um casal de branquelos, provavelmente universitários, que tem um interesse pela cultura popular, resolve visitar Acupe para ver a manifestação do Nego Fugido.

Ao chegarem lá, a menina munida de uma câmera aponta sua “arma” para um nego fugido e este em retribuição lhe aponta a espingarda. A partir daí a relação classe média-povo se inverte. “Para filmar aqui, Sinhá, tem que pedir money”.

É então que o rapaz é capturado pelo nego fugido e posto no meio da roda. A única saída para ele é entrar na encenação da manifestação e dentro dela experimentar a humilhação de ser um escravo, de ter que trabalhar e de ter que pedir esmolas. Do lado de fora, mas completamente afetada pelo que vê, a moça observa a metáfora da caça e do caçador mudar de direção.

É o plano dela olhando seu namorado sendo humilhado que é, para o cinema baiano, uma ruptura: uma espécie de paralisia - muito encontrada no neo-realismo italiano - onde diante de algo que lhe ultrapassa, o personagem não consegue reagir. É esta paralisia do corpo que gera o pensamento, não só do personagem mas também do espectador. “Nego Fugido” é a primeira vez no cinema baiano que a classe média se depara com a escravidão, este evento traumático que ainda marca nossos corpos e ideias.

No entanto, Nego Fugido é mais do que neo-realista. Filmado sem roteiro só pôde encontrar seu sentido no contato dos atores com a “realidade” de Acupe: um encontro entre a classe média (a equipe do filme que vem de Salvador) e o grupo cultural do Nego Fugido. O pensamento prévio, o roteiro bem elaborado, nunca poderia chegar neste ponto de crise que a experiência levou a equipe.

E o final do filme é uma cena bem siginificativa: tal como narcisos frente a lâmina d'água, ele tenta inutilmente retirar a tinta do rosto, marca da experiência pela qual atravessou, e ela - ainda paralisada - o observa. Se ele teve que perder a consciência para atravessar a experiência, ela teve a dor de suportar seu excesso, pois a tudo assistiu de fora.

Assim, eles olham o horizonte e talvez, agora, a classe média baiana tenha mais um caminho para construir suas narrativas para além das crianças pobres e dos sertanejos. Talvez agora, a classe média também possa utilizar o cinema para pensar o outro lado da desigualdade social, este lado que ainda se recusa em aparecer em nossas telas pois é exatamente a nossa própria imagem.

8 comentários:

Josias Pires disse...

O mais interessante é que os personagens classe média que interagem como o folguedo do Nego Fugido têm uma extração particular, ou seja, são performers. O filme parece-me um desdobramento de uma experiência de Leonardo, que chegou a se mudar para o povoado de Bom Jesus dos Pobres há algum tempo e foi conhecer na fonte alguns dos diamantes da cultura do Recôncavo. A atuação dele no filme, assim como a de Paula Carneiro, tem uma carga expressiva especial dado essa experiência acumulada por ele no contato com artistas populares da região. Leonardo é músico e este é outro canal de comunicação do qual ele se vale para dialogar com os grupos tradicionais. Portanto, esse encontro contêm uma simbologia relevante: é o encontro que resulta da busca de diálogo entre categorias sociais e culturais distintas que interagem nesse campo.

Unknown disse...

Lindo curta. Bela análise.

Daniel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel disse...

Olá Marcelo.

Não vi o filme, mas gostei do seu ponto de vista de análise sobre a questão da classe média, de ele encarar uma questão que ainda se faz realidade em salvador, nos tratos com as empregadas domésticas, motoristas, e etc.

Um comentário: Concordo que a maioria dos vídeos e filmes feitos aqui abordam a criança pobre e o sertanejo, e isso me incomoda. mas também há vários que são feitos acerca da classe média, desde o curta Suburbano, de Felipe Kowalczuk, Até o quase pronto longa Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro. Discordo quando você diz que são pouquísismas excessões.

Concordo, no entanto, que em Nego Fugido (de acordo com sua análise) temos representado em tela a classe média em busca do pitoresco que há no pobre e no sertanejo.

E realmente sua pergunta é pertinente. Me parece que a classe média, talvez por culpa, talvez por tédio, ache que retratar a si mesma não seja interessante.

E sim, pelo o que eu soube, o filme tem um roteiro, que obviamente teve mudanças no processo de filmagem, mas que muito do que estava planejado está em tela. Seria interessante checar essa informação com o pessoal da equipe, eles são bastante acessíveis, inclusive os diretores.

Abraço

Daniel Fróes

Marcelo Matos de Oliveira disse...

Olá Daniel, Suburbano dirigido por Felipe é um filme escrito a partir do ponto de vista da classe média. Inclusive é um dos que eu acho mais bem realizados no sentido da técnica e da tessitura fílmica. Bem lembrado!

Eu não tive acesso a nada do "Jardim das Folhas Sagradas" por isto não citei. Dentro da análise considerei apenas aqueles que foram para a pélicula. Ainda assim pelo visto só temos dois. Haveria algum outro?

Quanto ao processo do roteiro, eu tive acesso através dos próprios diretores. Não havia um roteiro propriamente dito mas uma idéia geral. O filme foi construído a partir dos atores. Inclusive tem algo escrito nos créditos sobre isto.

Valeu pelo toque!

Abraços
Marcelo

Marcelo Matos de Oliveira disse...

Só uma coisa que gostaria de deixar claro é que não estou dizendo aqui que vamos parar de fazer filmes no sertão ou com o ponto de vista da criança sobre a desigualdade social. Continuemos... pois é da repetição que se faz estilo.

O que me chamou atenção foi exatamente o predomínio destas duas figuras no cinema baiano. E a possibilidade, ou talvez necessidade, de variarmos um pouco o ponto de vista para algo que diz respeito a própria cultura da classe média.

Felipe Kowalczuk disse...

Grande Marcelo,
Adorei e concordo plenamente com seu ponto de vista. Não que devemos sair do sertão ou dos problemas socias, mas realmente, acho urgente que a classe média se coloque e se veja na tela. Essa é uma das minhas maiores buscas, mandou bem.
abraço

Unknown disse...

marcelo,

estivemos fora, voltamos de viagem hoje. creio que a discussão é boa e tomaremos fôlego para conversar mais sobre o "nego".

antes de mais nada, lhe digo que um roteiro foi elaborado e seguido. inclusive, filmamos na ordem em que as coisas acontecem no filme.

todas as cenas, no entanto, foram recriadas no set, junto com os atores. lá, percebemos o que funcionou melhor e descartamos o que soava artificial.

falamo-nos mais adiante.

abraços,

cau