domingo, 16 de novembro de 2008

ENTRE EU ME LEMBRO E SUPEROUTRO: um ensaio sobre a imobilidade

Crítica Vencedora do I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira
Também disponível:www.dimas.ba.gov.br/2008.1/dastaques/2008.11/critica1_marcelo_oliveira.doc
Por Marcelo Matos de Oliveira



Talvez, a grande potência que um texto que Eu Me Lembro possa gerar não esteja unicamente nele, mas em um encontro com Superoutro, filme de Edgar Navarro realizado 15 anos antes. Não se trata de uma comparação, muito menos de um confronto, mas de colocar-se no meio dos dois. Uma crítica que talvez nos traga novas reflexões situa-se exatamente neste intermezzo: nem em um, nem em outro - nem em uma margem, nem na outra -, mas exatamente no meio, numa espécie de terceira margem no rio.

Comecemos por Eu Me Lembro ou o memorial de um homem que escolheu tornar-se cineasta. Na primeira parte, vemos o mundo pelo olhar de Guiga, uma criança que vai descobrindo a vida, a sexualidade, a morte de Deus, as hipocrisias da família pequeno-burguesa, o sexo... As seqüências são costuradas por uma voz-off que dá sentido à passagem de uma a outra. Esta é a parte mais singela e mais bem resolvida do filme. O olhar infantil nos faz entrar em seu mundo e vislumbrar um Brasil preconceituoso, machista, racista e hipócrita. Aqui, nos identificamos facilmente com o personagem, mesmo com a tendência da voz-off de nos tirar do filme.

Na segunda parte, o filme apresenta graves problemas. O Guiga jovem parece perder a força que o Guiga infante trazia. Se na primeira parte, a voz-off conseguia integra-se ao filme pela ingenuidade infantil, na segunda parte ela perde esta característica e em muitas vezes parece irritar o espectador. O personagem principal vai tendendo a deixar de convencer juntamente com a arte e a maquiagem, que vão se desfazendo ao longo do filme. O bigode torto do noivo na cena do casamento da irmã de Guiga é o sinal deste desmoronamento. Ainda assim, o filme mantém-se em pé; parece que vai desmoronar, mas não desmorona. Isto acontece, talvez, porque as imagens tenham saído das entranhas da memória do diretor e, assim, acabam por conseguir atualizar o espírito de uma geração sessentista. São imagens e relatos, acima de tudo, verdadeiros e sinceros. Ao final, o filme encanta como uma decepção adorável.

No entanto, o filme se diferencia da média dos filmes brasileiros pela sua construção dramática, onde o personagem não tem um motivo nitidamente definido, e pelo ponto de vista de abordagem da sociedade brasileira. Em relação a este segundo ponto, Ismail Xavier, numa entrevista a Folha de São Paulo, em 03/02/2007, dividiu os filmes realizados na retomada do cinema brasileiro em três blocos a partir dos tipos dos personagens: o pobre pragmático que ascende na vida, o sujeito da classe média ressentida e o sertão-pop pernambucano contaminado de signos do moderno. Eu Me Lembro parece fugir desta classificação mostrando-se como uma obra rara do cinema brasileiro, um filme de memórias onde a motivação principal do personagem é narrar a si mesmo.

Sabemos das dificuldades de produção e da escassez de verba que o filme atravessou. São estas dificuldades que faz de Eu Me Lembro um quase-fracasso de uma terra, a Bahia, que ficou 18 anos paralisada sem fazer um único longa-metragem (falta quebrada por Três Histórias da Bahia em 2001). Para nós, baianos, Eu Me Lembro é um filme de transição, é uma fita que abre uma gama de possibilidades e mostra a potência que a Bahia tem para fazer cinema. Potência que ficou solapada e reprimida durante toda década de 90 e que parece querer explodir em Eu Me Lembro. Talvez por isso, o filme traz mais intenção - ver a quantidade de movimentos com a grua utilizada - do que aquilo que ele realmente consegue realizar. Espírito completamente diferente de Superoutro, onde o cineasta consegue atualizar toda a sua potência.

Se Eu Me Lembro é um filme essencialmente no passado, com suas vinhetas e jingles de época, Superoutro é uma narrativa que se desenrola essencialmente no presente. O personagem é acima de tudo imanência: “acorda humanidade!”. Não é muito difícil ver neste média-metragem a vontade de potência do super-homem nietzscheano.

À imanência de Superoutro contrapomos a transcendência de Eu me Lembro. Se no primeiro o personagem fala por si, no segundo, o narrador só consegue dar sentido a narrativa através da voz-off. Ele não está mais dentro do personagem, como no filme anterior, e sim acima dele. A voz-off é a voz transcendente da consciência do sujeito pensante (o cogito cartesiano) que sobrecodifica o passado, e também as imagens, durante toda a película. Isto acontece até nos momentos em que ela se cala e os personagens entram em cena, pois não esquecemos que ali é uma memória consciente, ou uma memória voluntária do narrador, como preferiria dizer Marcel Proust. Neste sentido, Eu me Lembro é um romance de formação, é um relato sobre si mesmo, é a maneira pela qual alguém se torna o que é. Se Super Outro é o “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche, Eu Me Lembro é o “Ecce Homo” de Edgar Navarro. Também somos aquilo que contamos que somos.

Um mesmo signo - o pulo do Elevador Lacerda - marca bem as duas margens onde estão os dois filmes. Em Eu Me Lembro, Guiga é humilhado pelo pai: “Por que você não se mata menino? Se joga do elevador Lacerda” - diz. Se aqui, o pulo vem de uma causa externa, em Superoutro, o mesmo signo aparece a partir de uma potência interna de um homem que tresvalorou todos os valores e “realmente” pulou do Elevador Lacerda para voar e elevar-se sobre toda Salvador. Não há a queda em um abismo e sim um vôo sobre a fissura do mundo como vontade de vida.
Este encontro entre os dois filmes nos faz pensar em Eu Me Lembro como sendo um filme de paralisia. Paralisia que é a da própria memória que deve reter a ação do corpo para que nos lancemos no passado, mas também a paralisia da produção cinematográfica baiana durante 18 anos. Não é esta imobilidade que parece perdurar durante todo o filme?

As primeiras imagens P&B, retiradas de acervos pessoais de algumas famílias baianas tradicionais, são bem significativas. Uma em particular nos chama a atenção: uma negra põe uma maçã na cabeça, um rapaz branco com uma espingarda posiciona-se. Ela fica ali paralisada, imobilizada, esperando o branco que mira e, por fim, acerta a fruta sobre sua casa. A negra se abaixa, pega a maçã do chão e dirige-se sorrindo para a câmera mostrando o furo da bala. Imagens de um cotidiano anódino, mas carregada de sentido histórico e de sentido, também, para o próprio filme.

As últimas imagens parecem apontar no mesmo sentido. Depois de tomar um ácido lisérgico, Guiga fica imóvel, recostado numa árvore e vê desfilar na sua frente uma legião de memórias. Porém, no último plano do filme, ele vê o próprio Navarro desfazer a paralisia numa espécie de ritual: a equipe do filme gira de mãos dadas numa roda e a grua – instrumento de trabalho durante todo o filme – aparece. Plano curioso, pois ao mesmo tempo em que é o presente do diretor, é também o futuro do personagem. Mais curioso ainda, pois é o futuro do cinema na Bahia. A partir de Eu Me Lembro, podemos dizer que, finalmente, saímos da imobilidade. Que o cinema baiano seja baiano, que cinema baiano seja cinema.

2 comentários:

André Setaro disse...

Sim, você tem talento para a reflexão cinematográfica. Avanti!

iPiaú - Espaço Livre disse...

Saravá!