domingo, 16 de novembro de 2008

BAMAKO: a potência da fabulação e os limites da democracia

Crítica Vencedora do I Concurso Estadual de Crítica Cinematográfica Walter da Silveira -
Também disponível: www.dimas.ba.gov.br/2008.1/dastaques/2008.11/critica2_marcelo_oliveira.doc
Por Marcelo Matos de Oliveira





Desta vez, não foi na cidade francesa de Evian, nem em Sea Island nos Estados Unidos, muito menos em Heiligendamm na Alemanha: lugares que sedearam as reuniões de cúpula do G8. Agora, a sede das decisões é um quintal humilde de uma casa africana em Bamako, capital de Mali, um dos países mais pobres do mundo: um cenário esquisito onde advogados e juízes dividem espaço com bodes, cachorros, crianças e mulheres que lavam e tingem roupas. É com o nome da cidade onde é realizado este julgamento contra o FMI e o Banco Mundial que Abderrahmane Sissako batiza o seu filme.

Se o G8 são reuniões de cúpula - onde se gasta uma fortuna -, a reunião em Bamako é pobre, tão precária quanto o cotidiano do povo de Mali. O filme, quase completamente rodado em cenas externas, é um tribunal a céu aberto, como se a ferida da África estivesse aí, exposta ao mundo. A câmera simples, com poucos movimentos, revela a simplicidade de um cinema que quer expressar a simplicidade de seu povo.

Mais do que um espaço simbólico criado para dar voz àqueles que não tem, o filme é um Acontecimento. Advogados africanos são convidados para elaborar suas defesas e atuarem de improviso frente ao juri, a câmera, ao espectador. Desta maneira, o que Bamako opõe a ficção não é o real - não é a verdade que sempre é o ponto de vista dos colonizadores e dos dominantes-, mas sim a “função fabuladora dos pobres” - como gosta de dizer Gilles Deleuze - e sua potência de produzir memórias e lendas. Assim, Bamako produz uma narrativa para os problemas do continente africano a partir do ponto de vista dos próprios africanos. É isto, mais do que as questões que se propõe a informar, a expor e a tratar, que faz de Bamako um filme político. Como disse Jean Rouch: “não será um cinema de verdade, mas a verdade do cinema”.

Sissako não opera a partir de dualismos estanques. A colonização não é dividida entre europeus e africanos. Como sabemos, uma parte dos africanos colaboraram - e foram até mesmo essenciais - no processo de escravidão e na exploração do continente. Parece ser isto o que Sissako quer dizer quanto uma família assisti na TV o western Death in Timbuku, onde cowboys brancos e negros assassinam a população negra de um lugarejo africano.

A um olhar desatento, Bamako pode ser um filme discursivo. Todavia, o falatório sempre é quebrado por imagens poéticas: seja uma criança que pega um papel de um bolo do processo e transita esquecida por entre as pernas dos adultos, seja insetos que galgam montes de areia, tal como os malineses que atravessam o deserto para tentar uma vida melhor na Europa. Todavia, a genialidade de Sissako está em quebrar o discurso dentro do próprio jogo democrático através de cantos e silêncios. Se isto acontece, talvez seja porque Sissako não acredite unicamente no poder do discurso como possibilidade de transformação social. Assim, o diretor aponta a limitação das regras da democracia que, comumente, são pautadas na linguagem, na argumentação lógica e na espera do momento que é reservado para cada pessoa falar: os preparativos para o início do processo estão ficando prontos, um senhor dirige-se ao microfone e começa a desabafar a situação de seu país, sendo logo contido por uma advogada negra que solicita que volte ao seu lugar e espere a sua vez de ser chamado. Resignado não entende como se pode dissociar a fala da vontade de falar.

Mas o tribunal de Sissako comporta formas de expressão que um tribunal comum talvez não suportasse. O discurso é interrompido, também, por senhores que cantam, dirigindo-se mais ao coração do que ao cérebro da audiência. No entanto, um dos momentos mais belos do filme, é quando um ex-professor dirige-se ao microfone e permanece, durante todo o tempo que lhe foi reservado, sem dizer nada. O silêncio não é visto por Sissako como impotência do discurso, mas como aquilo que não pode ser dito, como aquilo que não existe na linguagem, que não pertence à ordem do discurso. Existe uma dívida irreparável para com a África, e isto está tão óbvio, que não se tem mais o que dizer. A modernidade não foi concebida para os países do terceiro mundo, por aqui o que aconteceu foi uma modernidade às avessas, como diz o sociólogo Boaventura de Souza Santos. Assim, enquanto a conferência decorre, Chaka está adoecido na cama, sem remédio e sem hospital.

Talvez seja por conceber a globalização como sendo estranha aos africanos que Sissako insiste em colocar objetos modernos que não funcionam em seus filmes. As coisas produzidas do lado de lá, nem sempre funcionam do lado de cá. Se em “Esperando a Felicidade” era o pára-sol de um carro que constantemente caía tapando a visão do motorista e, também, uma lâmpada que sempre se recusava a acender; em Bamako, é um ventilador que a toda hora emperra, tal como o “projeto da modernidade” com suas promessas para solucionar as desigualdades no mundo. Por isso, o discurso lógico-argumentativo não pode dar conta do problema africano. A democracia tem que comportar outras formas de discurso, forma às vezes extrema, e talvez seja por isso que a arma do policial desaparece no meio do julgamento. Quem a pegou? O que vão fazer com ela? Terminamos o filme sem sabê-lo, talvez porque já saibamos demais. Bamako é o momento em que um quintal africano se coloca como porta-voz de todos os países do Terceiro Mundo.

Como todo esquema democrático é baseado na representatividade, não é toda a população que tem a possibilidade de participar das decisões. Assim, na porta de entrada do quintal onde acontece o julgamento tem um porteiro com uma lista na mão onde consta o nome daqueles poucos que podem entrar. Este paradoxo é expresso numa cena onde, no intervalo do julgamento, os advogados de acusação e de defesa vão falar ao celular, enquanto do lado de fora vemos alguns cidadãos que acompanham o julgamento pelo auto-falante, a estes não lhe são reservados o direito de falar, mas apenas de ouvir.

Talvez não adiante mesmo muito acompanhar todo o julgamento. Assim, em alguns momentos o auto-falante é desligado. A argumentação torna-se exaustiva e vamos caminhando para o final do filme já cansados. De repente, a câmera segue alguém para fora da plenária. O filme acaba de modo que não sabemos qual foi o resultado do julgamento. Talvez seja porque não caiba ao cinema dar um veredicto sobre a questão, mas talvez seja porque cabe ao cinema apontar a impotência do discurso e a velha estratégia de cansar a plenária para que ela perca com isso seu poder de argumentação.

E se o filme termina com uma morte é para pontuar que a vida do africano não se resume apenas à tragédia, pois ainda existem aqueles que prosseguem lutando. Com certeza, não é coincidência o fato de que já é o segundo ano consecutivo (2007 e 2008) que Bamako, capital de Mali, sedia a “Cúpula dos Pobres”, evento paralelo ao G8. O fim das utopias é para aqueles que desistiram de re-criar o mundo.

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