terça-feira, 28 de agosto de 2007

O CHEIRO DO RALO, de Heitor Dhalia

por Aline Frey e Marcelo Matos de Oliveira




Muito cinema para pouca grana. “O Cheiro do Ralo” de Heitor Dhalia recria um mundo onde habita a subjetividade dominante dos nossos tempos: o homem branco, capitalista, heterossexual e habitante da cidade. Estas quatro características definiriam bem o anti-herói do filme: Lourenço, o exímio representante da classe média dos países terceiro-mundistas.

Ninguém tem dúvidas: há muitos Lourenços. Se a corrupção da elite (sonegação de impostos, desvio de verbas públicas, latifundiários que exploram o trabalho escravo...) é de fácil denúncia, o mesmo não é para as pequenas corrupções cotidianas da classe média que são ainda muito mais sutis. Com temores de empobrecimento e delírios irrealizáveis de luxúria, a classe média negocia o quanto pode sua vida e seus valores. O filme deixa um saldo interessante: um asco pelo dinheiro e por todos que fazem dele o fim de seus princípios.

Lourenço põe a sua mesa de negócios entre seus clientes e sua mesquinha coleção de quinquilharias. Cada pessoa - que se senta à sua frente pra vender-lhe um objeto - tenta transformar memória, afeto e beleza em dinheiro. E o anti-herói, com muita presteza, está ali para colocar o objeto na balança e dizer arbitrariamente o quanto vale. As prateleiras de Lourenço, repletas de objeto pessoais, não são feitas de memórias e sim de mercadorias. Se o dinheiro pode tudo, é porque há um juros, um ônus impagável – o risco do irremediável.

Com frases prontas como “a vida é dura”, Lourenço aproveita-se do desespero de seus clientes para comprar seus objetos e, como troco, dá o cheiro do ralo. “Está sentindo este cheiro?” – pergunta Lourenço. “É o ralo” – ele mesmo responde. Como se emanasse de si mesmo, Lourenço vive imerso nesse cheiro.

O filme de Heitor Dhalia é marrom, a mesma cor da merda que decora as paredes do escritório de Lourenço. Se o cheiro é um sentido impossível de ser alcançado no cinema, suas cores parecem exalar para fora da tela o que está dentro do intestino e da alma do personagem.

Imerso entre o cheiro do ralo e os objetos “usurpados” de seus clientes, Lourenço vive sozinho. Os planos fixos de espaços abertos e vazios, usados como transição entre os espaços fechados da lanchonete, da casa e do trabalho, acentuam ainda mais esta solidão do personagem. Em seu apartamento, após terminar com sua namorada, Lourenço sente prazer ao assistir na televisão uma apresentadora de um programa de ginástica. Quando ela aproxima-se da câmera e diz a célebre frase de Nietzsche “eu só acredito num Deus que dança”, podemos perguntar-nos: “e onde dança o Deus de Lourenço?”

Lourenço, o homem comum habitante de uma cidade qualquer. Por isso não interessa se a história acontece no Rio de Janeiro ou em São Paulo, nos anos 70 ou 80. Tanto faz. Os valores do homem médio não variam tanto assim. Tal como o sotaque dos jornalistas das grandes redes de televisão, o sotaque de Lourenço é “nacional”.

Assim, quando Lourenço - interpretado por Selton Melo - é lembrado como sendo parecido com “o artista daquela propaganda”, o homem que compra objetos passa também a ser aquele que já vendeu a si mesmo: seu rosto pertence à televisão, às novelas, às propagandas e aos filmes globais. O artista desse filme tem uma imagem que antecede ao próprio personagem. Destarte, lembrando ao espectador estas “imagens” que estão fora da tela, o diretor consegue reforçar ainda mais o mercantilismo de Lourenço. Uma boa saída já que sabemos que o diretor resistiu a aceitar Selton Melo como ator do filme: ele queria um corpo mais decadente. No entanto, por insistência do ator e provavelmente da produção, acabou aceitando.

Se durante todo o filme, Lourenço consegue dominar os objetos e as pessoas, isso não acontece com o olho de brinquedo. Este é o único objeto que se furta aos seus lances mercantilistas. Ele acaba comprando-o a um preço exorbitante. O olho - a metáfora da captação da imagem - vira, em algumas situações, a própria câmera do filme. Posicionando-o a sua frente, Lourenço apresenta-lhe as pessoas. Seu olho persecutório é o brinquedo que passa a mediar a relação dele com o mundo.

Assim, ele adentra na lanchonete e com o seu olho, passa a roubar a imagem da bunda da moça que lá trabalha. Sua relação com ela apenas reprisa os velhos fetiches masculinos. A moça – objeto de desejo - não precisa de rosto, e nem se quer de nome. Ou melhor, o único rosto das mulheres – para Lourenço – é a bunda. Em uma das cenas, a clássica composição dos diálogos através do plano-contraplano ganha um uso interessante, quando a cara de Lourenço alterna com o contra-plano de uma bunda, tendo ao fundo o seu rosto desfocado. É assim que as mulheres flutuam na superficialidade dele, desfilam anônimas pelos olhos de quem apenas vislumbra possuir um corpo, ou ainda apenas uma parte dele.

O “Cheiro do Ralo” é um filme necessário sobre um homem comum, inteligente, solitário e mesquinho de nosso tempo.

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